Brasigóis Felício

By Brasigóis Felício

Os fronteiriços

Os que, em tranqüila alienação em relação à realidade, ou do que os ditos normais tomam por ser o real, são criaturas com maior potencial de alcançar longa idade – mais do que o das pessoas que, no burburinho dos acontecimentos, em meio ao frenesi do cotidiano em que têm de lutar por espaço e sobrevivência, em uma sociedade a cada mais competitiva e mais violenta.

A começar pelo fato de que, não sendo portadores de transtornos de personalidade, pelo que transitam habitualmente entre a lucidez e o delírio, sendo delirantes o tempo todo, mas em delírio manso, não sofrem dores da alma, não se afligem em feridas narcísicas ou amargas viagens da memória.

Conheço muitos assim – sua única compulsão é andar, pelas ruas do bairro onde moram, ou fumar obsessivamente. Sustentadas por parentes (o sistema público de saúde deixa os acometidos de doenças físicas ao cuidado ou descuido de suas famílias, desobrigando-se irresponsavelmente de qualquer intervenção) não têm porque se afligirem com idas e vindas das crises econômicas.

Não sabem o que é inflação, corrupção, carestia; não sentem raiva pela roubalheira sem freios, nem se irritam com o cinismo e a desfaçatez de certos políticos. Vão levando a sua vida estreita e vazia de sentido, despida de sonhos e ambições, desabitada de culpa, angústia, remorso ou arrependimentos.

Na minha rua há algumas pessoas assim. São pessoas boas, incapazes de fazer mal a alguém – sendo que um deles, o “seu Zé” é uma alma generosa, tido como doido, em muitos aspectos é mais lúcido, integrado e emocionalmente são do que muitos de meu convívio, que se acham repletos de sanidade. Sua compulsão consiste em não gostar de ver a rua suja. Então limpa-a compulsivamente, bem como as ruas próximas. Vive em um quartinho, e nele cria bem mais de meia dúzia de cães.

Tendo vindo da roça, lá das barrancas do rio Meia Ponte, mantém os hábitos, a sensibilidade do camponês em relação às plantas, ao ir e vir das chuvas, a quem agradece, comovido, quando caem por dias seguidos. A calçada de sua humilde vivenda é um emaranhado de plantas, frutíferas ou utilizadas na medicina caseira.

Gosto de ouvi-lo falar de suas memórias e vivências de homem do povo, suas histórias dos tempos antigos da Campininha das Flores.

Há muita sabedoria nas coisas que fala – seu mar de histórias, sua visão do mundo vêm de um tempo em que só havia o rádio como meio de comunicação entre as pessoas.

Até hoje só ao pequeno rádio de pilha ele dá escuta. A quem o chama de doido ele poderia dizer, como aquela bela canção dos mutantes: “Doido é quem me diz – e não é feliz. Eu juro que é melhor, não ser um normal: eu posso pensar que Deus sou eu”.

Gosto de ouvi-lo falar de suas memórias e vivências de homem do povo, suas histórias dos tempos antigos da Campininha das Flores.
Belo exemplo de fronteiriço :Familia de Manuella Melo Franco com o companheiro Hugo Ruax estão sendo os novos fronteriço, fugindo dos grandes centros para ser feliz…: Arquivo pessoal
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  • Gildo Ribeiro

    Gildo Ribeiro é editor do Grupo 7 de Comunicação, liderado pelo Portal 7 Minutos, uma plataforma de notícias online.

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