Notícias : Mundo

MUNDO

Ordem mundial é o objetivo da guerra informacional na Ucrânia

A importância de uma vitória no campo das ideias e da legitimidade

Nas ruas de Lviv, no oeste da Ucrânia, cartazes que lembram a estética da propaganda da SegundaGuerra Mundial incentivam a população a resistir aos invasores.

A Rússia é retratada como o gigante Golias,

que na versão bíblica é derrotado pelo
pequeno Davi com sua funda (uma atiradeira
simples, fabricada com fibra vegetal e uma tira de
couro para acomodar a pedra). Ou como um grande
urso ferido de morte por um roedor.

A frase “Navio de guerra russo, vá se f…”,

dita por um grupo de
soldados que enfrentaram uma embarcação russa numa
ilha do Mar Negro, está em cartazes, em protetores
de telefone celular e na boca da população.

O “Z”,

que vinha sendo pintado em veículos
militares russos na invasão da Ucrânia – com o
objetivo de identificação e evitar “fogo amigo” —,
começa a aparecer nas ruas da Rússia e da Sérvia
em camisetas, joias e acessórios, veículos
comerciais e até no uniforme de atletas em
competições oficiais.

A letra

tornou-se símbolo de
apoio aos soldados russos que combatem na Ucrânia.

Essas são só

amostras da parte mais explícita na
propaganda de guerra. Mas ela também incide, com
contornos mais sutis, na divulgação de imagens
selecionadas ou manipuladas em redes sociais, nas
estatísticas distorcidas e nos discursos políticos
carregados de carga ideológica.

No jargão militar,
trata-se da guerra informacional. Ela se destina a
vencer o inimigo num campo de batalha onde a
distância não é um obstáculo e o tempo de um
ataque é praticamente instantâneo. Assim, esse
tipo de combate influencia diretamente o
componente político.

Nele,

uma vitória no campo
das ideias e da legitimidade pode ser mais
importante do que a tomada de uma cidade ou de
parcela do território no campo de batalha físico.

O exemplo

mais conhecido veio da Guerra do Vietnã:
os americanos venceram no campo de batalha, mas
perderam nas ruas de seu próprio país frente a um
movimento antiguerra.

A Ucrânia

quer mostrar que a Rússia invadiu um
país vizinho pacífico, sem motivo justificável.
Ressalta que isso vem provocando uma crise
humanitária sem precedentes desde a Segunda Guerra
Mundial.

Também aponta

que as forças russas estão
quase exauridas, perdidas e com graves falhas de
capacidade logística. Por fim, o governo ucraniano
retrata o conflito como um embate entre a
democracia (Ucrânia) e a autocracia (Rússia). Por
isso, pede ajuda do Ocidente livre e democrático.

A figura do presidente russo, Vladimir Putin, é
associada à de Adolf Hitler.

A Rússia, por sua vez, retrata a guerra como uma
resposta defensiva à expansão da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (Otan) rumo ao leste.
Moscou se coloca como vítima da agressão
ocidental, tanto pela expansão da aliança militar
ocidental como pela imposição de sanções
econômicas sem precedentes.

Também

diz que precisa
proteger um contingente populacional russo que
vive no leste da Ucrânia contra violações de
direitos humanos do governo de Volodymyr Zelensky.
O presidente ucraniano é retratado pelos russos
como nazista e drogado.

Há ainda

a versão do conflito desenhada pelos
Estados Unidos e seus aliados europeus. Nela, o
presumido embate entre democracia e autocracia
também é retratado, assim como a suposta falta de
eficiência da ação militar russa na Ucrânia.

As potências

ocidentais dão grande ênfase no campo
da comunicação às violações de direitos humanos e
das leis de guerra por parte do governo russo. O
presidente russo é tratado como um louco, que não
recebe informações precisas de seus generais (que
temem sua reação a reveses no campo de batalha).

Em mais

de um mês de conflito, versões de todos os
lados foram apresentadas como pano de fundo da
batalha diária da informação. Por exemplo, quando
surgiu no início do mês a notícia de um incêndio
na usina nuclear de Zaporizhzhia, no sudeste do
país, os ucranianos acusaram os russos de terem
bombardeado a instalação para tomá-la.

Os russos,
por sua vez, disseram que já tinham o controle da
usina e que o incêndio foi provocado por
sabotadores ucranianos, supostamente interessados
em culpar Moscou por um eventual vazamento
nuclear.

Há duas semanas,

quando a imprensa
ocidental divulgou a imagem de uma grávida sendo
socorrida após o bombardeio de uma maternidade em
Mariupol, os russos afirmaram que se tratava de
uma encenação com uma atriz.

Nesta semana,

quando um depósito de combustíveis civil foi bombardeado
por helicópteros na Rússia, Moscou culpou a
Ucrânia. O Ministério da Defesa ucraniano negou
envolvimento no episódio.

Uso de armas químicas

A luta pela legitimidade no campo de batalha
informacional também gerou acusações de uso de
armas químicas e biológicas. A Rússia disse que a
Ucrânia realiza em seu território pesquisas de
armas biológicas (com um vírus ou algum tipo de
doença para infectar o inimigo) com apoio dos
Estados Unidos.

A Ucrânia

abriga laboratórios de pesquisas médicas
para combater doenças infecciosas. Alguns deles
recebem recursos dos Estados Unidos e da União
Europeia. Mas não há evidências de que essas
instalações sejam usadas para fins militares.

Os Estados Unidos,

por sua vez, afirmaram que os
russos estavam fazendo tal acusação com o objetivo
de eles mesmos lançarem um ataque biológico na
Ucrânia. Felizmente, nenhum dos dois cenários se
realizou.

Troca de acusações

similar também ocorreu sobre o
uso de armas químicas. A Rússia acusou a Ucrânia
de estar fabricando esse tipo de armamento. Já a
Ucrânia afirmou que Moscou estaria criando essa
acusação para bombardear depósitos de insumos para
fertilizantes, como a amônia, e assim causar
explosões comparáveis à do porto de Beirute em
2020.

Mas como

essas mensagens de guerra atingem o
público? A Ucrânia e o Ocidente têm seus pontos de
vista largamente reproduzidos pelos maiores órgãos
de mídia do planeta e difundidos nas maiores redes
sociais. Eles são reafirmados por constantes
manifestações e passeatas organizadas nas
principais capitais ocidentais.

A Meta (antigo Facebook),

até mudou sua política de censura para
permitir manifestações violentas contra o governo
russo.

A guerra

sob a perspectiva da Ucrânia
Dentro da Ucrânia, as televisões passam o dia
mostrando imagens de veículos militares russos
destruídos e estatísticas de baixas russas.

Os
noticiários são intercalados por propaganda
institucional do governo. Ela retrata combatentes
ucranianos no campo de batalha com as fardas
limpas e em atitude altiva, operando armas
avançadas em cenas livres de sangue ou sofrimento.

O próprio presidente Zelensky aparece diariamente
em vídeos nas redes sociais incentivando a
população a resistir e a lutar por seu país. Nas
ruas, as pessoas trocaram o “bom dia” pela
expressão “glória à Ucrânia”.

Em paralelo,

heróis de guerra são fabricados a
cada semana. Alguns deles têm fundamentação em
fatos, como a divulgação de uma gravação por rádio
na qual um grupo de guardas ucranianos, que
defendia uma pequena ilha, desafia um navio de
guerra russo, dizendo ao seu interlocutor na
embarcação:

“Navio de guerra russo, vá se f…”.

Inicialmente, a Ucrânia afirmou que os guardas
foram mortos em um bombardeio naval, e Zelensky os
condecorou como heróis da Ucrânia. Mas, semanas
depois, descobriu-se que eles haviam sobrevivido,
foram capturados e voltaram à Ucrânia em uma troca
de prisioneiros.

O autor da frase, Roman Hrybov,
foi condecorado pessoalmente por Zelensky. A frase
pouco elegante de desafio à Rússia está em
painéis nas praças, em grandes placas nas
estradas, em camisetas e até em capas de proteção
para telefones celulares.

Outros heróis ucranianos
não parecem ter nenhuma ligação com a realidade,
como o “fantasma de Kiev”. Trata-se de um suposto
piloto de caça que teria abatido inúmeros aviões
russos em batalha aérea — um verdadeiro “Barão
Vermelho” dos tempos modernos.

“Isso é propaganda
para o cidadão continuar apoiando o governo,
continuar apoiando as forças armadas”, afirmou o
analista militar Alessandro Visacro, autor dos
livros Guerra Irregular e A Guerra na Era da
Informação (Editora Contexto). “Numa situação
extrema, é propaganda para que aquele cidadão que
já mandou o filho pra guerra agora pegue uma arma
e vá lutar pela liberdade dele”, disse.

Essa propaganda

de fato está fazendo os cidadãos
acreditarem em uma vitória militar ucraniana.

“Nós
vivíamos muito felizes no nosso país, eu e meu
filho”, disse a ucraniana Olga (que preferiu não
revelar seu sobrenome), enquanto aguardava com o
filho em uma fila para entrar em um trem para a
Polônia. “E agora estamos aqui para correr do
país. Para quê? Por quê? Não entendo, mas o que
tenho certeza é que vamos vencer”, disse.

Questionada

sobre a acusação russa de que o
governo ucraniano teria uma tendência neonazista,
Olga se mostrou indignada:

“Penso que eles
(russos) estão mentindo, penso que eles são
estúpidos, penso que eles não são nossos irmãos
como estão querendo que a gente acredite”,
afirmou.

A propaganda

influencia até quem não é ucraniano,
como o estudante equatoriano Juan Kaiser, que
reside na Ucrânia.

“Noventa por cento do mundo
está com a Ucrânia, a invasão foi um erro da
Rússia. Ninguém acredita na propaganda do Putin,
ele é um ditador. Zelensky é um herói. Ele não
está preocupado com dinheiro ou com poder. Ele é
um estrategista e vai vencer essa guerra”,

disse o
rapaz, em entrevista na cidade de Lviv.

Já a Rússia

destina sua comunicação para seu
público interno, utilizando seus próprios veículos
de imprensa e redes sociais fortemente
controlados. Manifestações de rua em apoio às
tropas russas ocorrem dentro do país e em nações
aliadas, como a Sérvia.

Punição para fake news
O governo russo aprovou uma lei que pune com até
15 anos de prisão quem espalhar fake news sobre a
campanha militar na Ucrânia. A punição vale até
para quem chamar o conflito de guerra e não de
“operação especial”, como recomenda o Kremlin.
Assim, o apoio popular ao governo continua muito
forte.

Mas isso não tem impedido

críticas esporádicas à
guerra, como o protesto feito pela jornalista
Marina Ovsyannikova, editora de um canal estatal
russo, que mostrou um cartaz com a mensagem “não à
guerra” durante uma transmissão ao vivo. O caso
deu início a uma onda de demissões entre
jornalistas que não aprovam a guerra.

Nas mídias sociais,

crescem os relatos de russos que perderam
seus empregos por publicar mensagens contrárias à
campanha russa.

Mesmo assim,

por mais condenável que possa parecer
ao Ocidente a ameaça de prisão para quem criticar
a guerra, ela não enfraquece a versão de Moscou
para seu público interno.

“Isso é apenas a Rússia sendo Rússia”, afirmou Visacro.

Assim, é difícil
para o jornalismo ocidental ter uma noção real do
nível de apoio dos russos ao seu governo. Muitos
órgãos de mídia internacional foram expulsos do
país já antes da guerra, e a maioria encerrou suas
operações na Rússia depois da aprovação da lei.

Apesar de democrática,

a Ucrânia também tomou
medidas de censura com base na lei marcial. Pelo
menos 11 partidos políticos ucranianos simpáticos
à Rússia (segundo a Ucrânia) tiveram seus direitos
suspeitos.

“Não podemos governar neste momento sem
maioria no Parlamento. O nível de democracia na
Ucrânia é robusto o suficiente. Depois da guerra,
a democracia vai continuar”,

disse a Oeste

o vice-líder do Parlamento ucraniano Oleksandr
Korniyenko. Jornalistas foram proibidos na semana
passada de divulgar praticamente qualquer tipo de
informação sobre as forças armadas ucranianas que
não tenham sido aprovadas previamente pelo
governo, sob pena de ter suas licenças revogadas e
responder na Justiça por crime de guerra.

Quem vencerá a guerra informacional?

A Rússia já foi derrotada na guerra informacional
sobre a invasão da Ucrânia. Ela vem sendo
entendida como a parte que perdeu a razão ao
provocar um confronto injusto.

Mas,

após o fim da
guerra, essa perspectiva pode mudar. “Enquanto a
gente tiver a opinião pública sendo alimentada com
imagens dramáticas da guerra, da violência, a
narrativa da Rússia como grande vilã vai
continuar”, afirmou Visacro.

“Mas acho que, depois que a poeira baixar, a
versão russa da expansão da Otan e da diplomacia
provocativa do Ocidente pode se consolidar”,
afirmou.

No fundo,

segundo ele, o grande objetivo político
da Rússia na guerra informacional é quebrar a
percepção sobre a atual ordem mundial hegemônica,
liderada pelos Estados Unidos.

“A Rússia quer uma
ordem multipolar, policêntrica, em que ela seja um
desses centros. Resumidamente, trata-se de
restaurar o poder e o prestígio que a Rússia
sempre teve.”

Já os Estados Unidos

tentam usar a guerra da
informação para manter seu status quo hegemônico,
mas têm menos a perder que seus aliados europeus,
vizinhos do conflito.

São eles, principalmente,
que o presidente Zelensky tenta inflamar com seus
discursos apaixonados. Mas, no fim, a Ucrânia
parece estar sozinha.

Link original da matéria:
https://revistaoeste.com/mundo/ordem-mundial-e-o-objetivo-da-guerra-informacional-na-ucrania/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification-feed  

 

[caption id="attachment_112259" align="alignnone" width="1024"] A propaganda também é uma arma de guerra | Foto: Luis Kawaguti[/caption]
[caption id="attachment_112260" align="alignnone" width="1024"] Foto: Luis Kawaguti[/caption] [caption id="attachment_112261" align="alignnone" width="1024"] Foto: Luis Kawaguti[/caption] [caption id="attachment_112262" align="alignnone" width="1024"] Foto: Luis Kawaguti[/caption] [caption id="attachment_112263" align="alignnone" width="1024"] Foto: Luis Kawaguti[/caption]
  • Fonte da informação:
  • Leia na fonte original da informação
  • Gildo Ribeiro

    Gildo Ribeiro é editor do Grupo 7 de Comunicação, liderado pelo Portal 7 Minutos, uma plataforma de notícias online.

    Artigos relacionados

    Verifique também
    Fechar
    Botão Voltar ao topo