Cultura Delírio a Dois
O fiasco do novo “Coringa” pode revelar também um fracasso do espectador
O primeiro Coringa, de 2019, foi sucesso de crítica e público, faturando mais de U$ 1 bilhão nas bilheterias.
Já sua continuação de 2024, Coringa:
Delírio a Dois, conseguiu feito oposto.
Até aqui, depois de quatro semanas em cartaz, mal conseguiu cobrir seus custos, arrecadando em torno de U$ 200 milhões.
Quanto à recepção de crítica e público, basta consultar qualquer desses sites agregadores de avaliações de filmes, como o Rotten Tomatoes, para se constatar uma quase unanimidade sobre sua ruindade. Haverá spoilers no que segue.
Muito do fracasso tem sido debitado na conta de um suposto preconceito com musicais.
Argumento que não se sustenta com a mera lembrança do ganhador do Oscar de 2017, La La Land: Cantando Estações, sucesso de crítica e público, tendo faturado bem nas bilheterias.
Ainda que se considere o suposto preconceito como sendo do público-alvo, o consumidor de filmes de super-heróis, não parece suficiente como explicação quando se vê que as músicas têm uma função relevante na obra para retratar o mundo interior de Arthur Fleck e o conflito de dissociação de sua personalidade para o surgimento do Coringa.
Talvez o fracasso do filme decorra mais da frustração das expectativas deste público específico, que o aguardava com ansiedade, esperando um desenvolvimento do personagem do Coringa e não a repetição do drama mental de Arthur Fleck, que foi a opção escolhida.
Expectativa mais do que legítima, pois a transformação de Arthur no famoso vilão foi suficientemente trabalhada no primeiro filme, sendo natural que nesta sequência viesse mais o agente do caos pelo caos, ou seja, um Coringa mais como o do famoso filme do Batman dirigido por Christopher Nolan. Fosse assim, a parte musical estaria sendo até elogiada.
No fim das contas, o segundo filme não dá sequência ao primeiro, estacionando o personagem no seu drama interior, de onde não saiu.
Talvez se optasse pela fuga de Arthur do hospício Arkham, guiado pela personagem Harleen “Lee” Quinzel, interpretada por Lady Gaga, o filme teria um destino melhor, mais de acordo com aquela expectativa.
Mas ao optar por transformar a segunda parte da história em um drama de tribunal, não só perdeu a força que a primeira parte possuía, como “deu a ré” na história, mais reprisando, em forma de testemunho, o que se viu no primeiro ato do que contando uma nova história.
A frustração do espectador, portanto, é justificada e não deixa de ser, em boa medida, a mesma de Quinzel, que não tinha interesse algum em Arthur, apenas no Coringa que, para “nascer”, precisava “matá-lo”.
É com este intento que ela tenta “ajudá-lo”, mas sem sucesso.
Seu abandono no fim do julgamento, quando Arthur recua de ser o Coringa, é seguido de outros fãs fantasiados com a máscara de palhaço, igualmente frustrados.
E com eles foi-se embora também a grande maioria dos espectadores do filme.
A saída para a luz
Nisso reside uma reflexão interessante. É natural que, indo assistir a um filme do Coringa, o espectador saia frustrado quando o personagem mal aparece de fato.
Entretanto, quem torceria pelo Coringa contra o Batman?
Quem preferiria que ele vencesse ao final?
No fundo, queremos o Coringa para vê-lo ser derrotado.
Por que, então, quando o Coringa é derrotado antes mesmo de se tornar o Coringa, isso seria ruim?
Por que não torcer pelo tratamento de Arthur Fleck, ainda que não para curá-lo, mas ao menos para deixar de ser o vilão que seria sem tratamento?
Ou torcer mesmo por sua punição em vez de seu sucesso?
Quando a frustração justificada é deixada de lado para considerar a história por outra perspectiva, como sendo não a da continuidade do nascimento do Coringa, mas a da tragédia de Arthur Fleck, o filme se torna outro e é justamente na parte “musical” que revela seu propósito.
A última música cantada por Arthur é True Love Will Find You in the End (O Amor Verdadeiro o Encontrará no Fim), do cantor e compositor indie Daniel Johnston (1961-2019), na qual canta pedindo para que não fiquemos tristes, mesmo sabendo que ficaremos, nem desistamos até que o amor nos encontre no fim.
Mas, para isso acontecer, teria uma “pegadinha”: o amor só lhe encontra se você o estiver procurando.
Mas como poderia te reconhecer/ Se você não sair para a luz, para a luz?, canta Arthur.
Um dos elementos essenciais de toda tragédia digna do nome é a presença do pathos, uma espécie de sentimento, de sofrimento que desperta a compaixão do espectador.
É a saída para a luz.
Arthur nunca recebeu amor verdadeiro em sua vida, seja de sua família, seja de amigos, seja de uma mulher, mas sua decisão final no filme não deixa de ser continuar procurando por isso, por esse amor.
Alguém que escolhe assim não é digno de compaixão?
Não significa, por óbvio, dizer que sua carência e abusos sofridos justificam seus crimes, muito menos o torna impune, tampouco que a condenação à pena de morte seria injusta.
Nada disso muda com sua decisão final. Mas o pathos não tem a ver com Arthur ou o Coringa e sim com o espectador.
No fim das contas, temos diante de nós uma escolha entre permitir que a luz da compaixão nos encontre ou nos fechar nas trevas da frustração que, mesmo justificada, resulta sempre em indignação, quando não revolta.
Adivinha qual dessas opções lhe torna mais parecido com o Coringa?
Por: Francisco Escorsim, especial para a Gazeta do Povo