Evento lembrado por datas escolares
Devemos mesmo comemorar a Proclamação da República?
A história política brasileira costuma ser celebrada, mas raramente é compreendida com seriedade.
A Proclamação da República, em 1889, tornou-se um símbolo cívico esvaziado: um evento lembrado por datas escolares, mas pouco refletido em seu significado real.
Para muitos intérpretes do Brasil — de Faoro a Nunes Leal, de José Murilo de Carvalho a Olavo de Carvalho, de Thomas Giulliano a Gustavo Corção — a república brasileira nunca se realizou plenamente.
Ela nasceu como um ideal proclamado, não como uma realidade construída.
Essa distância entre palavras e fatos torna essencial examinar a própria noção de “república”.
Na tradição grega, a politeía era menos um regime específico e mais uma forma de ordenação da vida comum, fundada na participação, na virtude e na responsabilidade compartilhada.
Em Roma, res publica significava literalmente a coisa pública, aquilo que é de todos e para todos; um bem comum que pressupunha deveres, laços comunitários e instituições duradouras. Já a experiência americana reinterpretou esse legado ao criar um sistema de freios e contrapesos, um arranjo destinado a limitar o poder e proteger o indivíduo da tirania, mesmo democrática.
O problema surge quando confundimos três dimensões fundamentais: o signo, o significado e o referente.
- – O signo é a palavra “república”, o rótulo, o símbolo formal.
- – O significado é o conceito que essa palavra carrega: governo das leis, primazia do bem comum, cidadania ativa, limites ao poder.
- – O referente é o que existe de fato no mundo: a prática política real, as instituições concretas, os costumes, a cultura cívica.
Quando esses três elementos se alinham, a república se realiza.
Quando se separam — quando o signo proclama o que o referente desmente — nasce a confusão que marcou o Brasil desde 1889.
Como explica Thomas Giulliano, regimes podem mudar nomes, bandeiras e slogans sem alterar sua substância; e a política brasileira se tornou uma sucessão de signos desconectados de seus referentes históricos e culturais.
É precisamente isso que ocorreu com a Proclamação da República.
Como mostraram Faoro, José Murilo de Carvalho e Boris Fausto, o movimento de 1889 não foi popular, não foi democrático e não expressou um ideal coletivo.
Foi uma operação conduzida por setores da elite econômica (especialmente os cafeicultores paulistas), da elite militar positivista e de grupos urbanos emergentes que buscavam expandir seu próprio poder.
Victor Nunes Leal , ao analisar o coronelismo, revela como o novo regime apenas reorganizou o controle local para favorecer oligarquias regionais sob a fachada republicana.
Sérgio Abranches ampliou essa interpretação ao formular o conceito de “presidencialismo de coalizão”, mostrando que o arranjo político inaugurado em 1891 criou um Estado fragmentado, negociado, capturado, muito longe do ideal de res publica.
No plano simbólico, a ruptura foi ainda mais drástica. A república tentou substituir a continuidade histórica do Brasil imperial — valores, ritos cívicos, visão de Estado e símbolos que formavam o imaginário nacional — por uma estética positivista recém-importada.
A bandeira, o lema, o hino e até o novo modelo de educação cívica expressavam a tentativa de implantar um ideal abstrato sobre uma sociedade concreta.
Como adverte o jurista Miguel Reale, instituições não se sustentam em abstrações; precisam nascer de dentro da vida social, e não ser impostas por engenheiros políticos.
Olavo de Carvalho e Gustavo Corção insistiram nessa mesma crítica sob outra forma:
nenhum projeto nacional sobrevive quando substitui símbolos vivos por ideologias frias, quando escreve uma história nova para apagar a história real.
Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, embora de tradições intelectuais distintas, chegaram a conclusões similares: o Brasil sempre sofreu com tentativas de modernização artificial, descoladas das estruturas culturais que organizam a vida do povo.
O percurso histórico da república confirma essa tese.
A República Velha instaurou o domínio dos governadores e coronéis; Vargas centralizou o poder numa espécie de “Estado pedagógico”; o período populista foi marcado por instabilidade crônica; o regime militar instituiu uma burocracia tecnocrática que se pretendia desenvolvimentista;
e a Nova República, embora democrática, herdou um Estado inchado, um sistema partidário fragmentado e uma elite política adepta de pactos temporários para autopreservação.
Esse vai-e-vem institucional resultou em uma sucessão de constituições — 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1988 — com a ilusão de que mudar o texto legal mudaria a realidade.
Mas, como lembra Miguel Reale, constituições apenas formalizam o que uma sociedade é capaz de viver.
E como observa Boris Fausto, nosso problema nunca foi falta de constituições, mas falta de cultura política para sustentá-las.
O diagnóstico contemporâneo é sombrio, mas realista.
Vivemos ciclos de crise porque as causas estruturais nunca foram enfrentadas.
O brasileiro médio se afastou de sua própria história, perdeu referências no presente e não encontra direção para o futuro.
Confundimos riquezas naturais com identidade nacional — mas uma nação não é sua geografia, e sim sua cultura.
Japão , Israel e Cingapura, países pobres em recursos, tornaram-se grandes porque têm coesão, disciplina, propósito e ética pública; exatamente o que nossa república não conseguiu formar.
E então chegamos à pergunta que incomoda e que dá título a este artigo: devemos mesmo comemorar a Proclamação da República?
Comemoramos um golpe militar sem participação popular?
Celebramos a quebra de continuidade histórica que ainda não conseguimos superar?
Ou celebramos um ideal republicano que desejamos, mas nunca realizamos?
Talvez a resposta mais honesta seja esta:
não celebramos a república que temos, mas a república que ainda não construímos.
Uma república fundada na responsabilidade individual, na primazia do bem comum, no respeito à tradição e no reconhecimento de que símbolos não são ornamentos, mas pilares que sustentam a identidade de um povo.
A verdadeira reflexão não é sobre o passado, mas sobre o futuro:
enquanto o signo permanecer desconectado do referente, enquanto chamarmos de “república” aquilo que funciona como oligarquia, tecnocracia ou populismo, continuaremos presos a ciclos de crise que já beiram o insuportável.
O 15 de novembro deveria ser menos um feriado e mais um convite à honestidade histórica — o primeiro passo para que, um dia, possamos finalmente ter uma República digna de ser celebrada.
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Por: Rodrigo Schirmer Magalhães
Cientista político e Analista de Politica
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