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O Que Realmente Importa

Cansei de falar de política, geopolítica, poder, crises e jogos de força.

E não foi um cansaço súbito. Foi um cansaço que veio aos poucos, como quem percebe que repetiu demais as mesmas palavras, mesmo quando elas estavam corretas.

Pensei muito sobre o que escrever neste final de ano.

Os temas vinham prontos, quase automáticos, como velhos mapas já conhecidos.

Ainda assim, nada parecia verdadeiro o bastante para encerrar um ciclo.

A clareza não veio diante de uma tela, nem no ruído das manchetes. Veio no silêncio de uma estrada.

Eu dirigia para buscar meu filho, que estava na praia.

O carro avançava tranquilo, o asfalto ainda escuro em alguns trechos depois da chuva, as montanhas recortando o horizonte.

Enquanto dirigia, um filme passou inteiro pela minha cabeça: o estado do mundo, as tensões permanentes, os conflitos intermináveis, as decisões tomadas longe demais de nós. Pensei em tudo aquilo sobre o que costumo escrever — e talvez sobre o que já escrevi demais.

Então algo simples, quase banal, aconteceu: dei-me conta de que não tenho controle sobre nada disso. Não sobre o mundo. Não sobre os rumos da história. Não sobre o que acontecerá amanhã.

E, no mesmo instante, sem esforço algum, eu estava ali.

Ali, ao lado da mulher que amo. Numa estrada bonita. Indo buscar o meu maior tesouro.

Foi nesse momento que compreendi — não como conceito, mas como experiência — o que posso chamar de paz.

Não a paz como ausência de problemas, mas como presença.

Presença plena no agora.

Presença no que é real, no que está dado, no que está ao alcance das mãos e do coração.

Abracei minha esposa. Depois abracei meu filho.

Tomei um banho de mar. A água fria cortando o corpo cansado.

Os pés descalços na areia ainda úmida. Um dia de praia depois da chuva, desses que não pedem explicação nem promessa. Um mergulho simples. Um riso solto. Um silêncio confortável.

Ali decidi: hoje não escreveria sobre política, geopolítica ou jogos de poder. Hoje não.

Hoje quero falar de vida.

De família.   De amor.    De esperança.

Lembrei da minha família inteira.   Do meu pai.  Da minha mãe . Dos meus irmãos.

Dos meus pequenos amores — meus afilhados.

Lembrei que antes de qualquer visão de mundo, antes de qualquer análise sofisticada, foi ali que tudo começou. Foi ali que aprendi o valor da presença, do cuidado, da fidelidade silenciosa.

Lembrei da infância no interior, nos anos 80.

Um mundo sem celular, sem internet, sem excesso de informação. Um mundo analógico, lento, humano. Futebol jogado na rua até escurecer, com goleira improvisada e discussões resolvidas no grito — e esquecidas no minuto seguinte.

Bicicleta sem medo, carrinho de lomba descendo rua de terra, joelho ralado como prova de aventura. Banho de chuva sem pressa, sem previsão do tempo, sem urgência de ir embora.

Lembrei da casa da vó — sempre aberta, sempre cheia de gente, cheiro de café passado na hora certa, bolinho de chuva com canela, pipoca com sal e manteiga, conversa sem relógio.

Um lugar onde a gente chegava sem avisar, onde sempre havia espaço, colo, tempo.

Um lugar que ensinava, sem discurso algum, que pertencimento é isso: ser esperado.

As coisas eram ditas olhando no olho.

A palavra tinha peso porque vinha acompanhada de rosto, de gesto, de responsabilidade. Os conflitos eram resolvidos na presença. Não havia algoritmo mediando relações. Havia gente.

Talvez seja por isso que, ao final de mais um ano, fique cada vez mais claro para mim: nenhuma grande mudança começa nos palácios, nos parlamentos ou nas manchetes.

Ela começa na cozinha de casa, numa mesa simples, numa conversa tardia.

Começa num pedido de perdão difícil. Num gesto pequeno que ninguém vê. Começa quando alguém decide não endurecer o coração, mesmo depois de tudo.

A esperança que vale a pena não é otimista. Ela não ignora o mal, não promete finais fáceis, não vive de discursos motivacionais.

Ela se parece mais com aquela de Um Sonho de Liberdade: silenciosa, obstinada, quase invisível. Andy Dufresne não vence porque o mundo melhora — vence porque se recusa a permitir que o mundo o destrua por dentro.

Quando tudo é tirado, ainda resta a fidelidade ao sentido.

Viktor Frankl entendeu isso no lugar mais improvável.

Ele nos ensinou que o sofrimento não é o oposto do sentido; o sofrimento sem sentido é.

O ano que passou talvez não tenha sido leve, justo ou generoso.

Mas ele não precisa ter sido vazio. Às vezes, o que salva uma pessoa não é mudar as circunstâncias, mas descobrir um “porquê” que sustente o “como”.

Penso também em A Vida é Bela.

Um pai que, em meio ao horror, escolhe proteger a imaginação do filho. Não por negar a realidade, mas por compreender algo mais profundo: a esperança é um ato moral.

Amar, ali, é resistir. Criar sentido para o outro é talvez a forma mais alta de coragem.

Isso acontece todos os dias, em silêncio, quando pais escondem o próprio cansaço para oferecer segurança, quando mães sustentam lares inteiros com gestos que jamais virarão notícia.

A vida real é feita disso: cenas pequenas. Um café passado cedo demais. Uma mesa simples.

Um abraço antes de dormir. Um pôr do sol visto da estrada, entre montanhas, na volta para casa. Nada disso parece grandioso — e talvez aí esteja o segredo.

Tolkien chamava de eucatástrofe aquele instante em que, quando tudo parece perdido, o bem aparece não como força esmagadora, mas como fidelidade persistente. No Senhor dos Anéis, o mundo não é salvo pelos poderosos, mas pelos pequenos que continuam caminhando quando já não há garantias.

Virtude, afinal, não é entusiasmo. Como lembrava Tomás de Aquino, virtude é constância. É continuar fazendo o bem quando o entusiasmo acaba, quando ninguém vê, quando o retorno não vem. Esperança é isso: não prever que dará certo, mas decidir permanecer fiel ao que é certo.

Talvez por isso histórias de perdão nos desarmem tanto.

Quando alguém escolhe não devolver violência com violência, algo no mundo moral se reorganiza.

Victor Hugo mostrou isso com clareza: um único gesto de misericórdia pode mudar uma vida inteira.

Não é ingenuidade. É revolução silenciosa.

No meio do barulho do mundo, esquecemos que o mal vive do passado e do futuro — do ressentimento e do medo.

O bem, como lembrava C.S. Lewis, vive no presente: no agora em que escolhemos agir melhor do que ontem.

Hannah Arendt dizia que todo novo começo é um milagre. Talvez seja isso que o próximo ano realmente ofereça: não garantias, mas possibilidades.

Não sei como será o mundo.

Mas sei algo mais importante: o mundo começa onde alguém decide amar mais, perdoar mais, cuidar mais.

A esperança não mora nas abstrações, nos sistemas ou nas promessas grandiosas.

Ela mora no indivíduo que, mesmo cansado, escolhe não endurecer.

Que, mesmo ferido, escolhe não se tornar cruel.   Que, mesmo descrente, escolhe continuar.

Encerrar o ano assim não é fuga.

É retorno ao essencial.

É lembrar que a felicidade mora no agora, na presença, na simplicidade do cotidiano.

Num dia de praia depois da chuva. Num mergulho no mar. Num pé descalço na areia. Num pôr do sol visto da estrada.

Porque, no fim, esperança não é acreditar que tudo dará certo.
É decidir que, aconteça o que acontecer, vale a pena continuar fazendo o bem.

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Por: Rodrigo Schirmer Magalhães
Cientista político e Analista de Politica

 

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  • Gildo Ribeiro

    Gildo Ribeiro é editor do Grupo 7 de Comunicação, liderado pelo Portal 7 Minutos, uma plataforma de notícias online.

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