Cinema
Tomado pela “doença do dragão”, Peter Jackson destruiu a obra de J.R.R. Tolkien
A afirmação do título pode parecer demasiadamente pessoal, mas é necessária, afinal, “O Hobbit: a Batalha dos Cinco Exércitos” coroou uma trilogia feita com o único objetivo de atrair o acúmulo dos dólares da bilheteria

Foram necessárias duas sessões de
“O Hobbit: a Batalha dos Cinco Exércitos” para que este texto fosse escrito. Por uma razão: na primeira, ainda enfadado do último filme — “A Desolação de Smaug” —, o preconceito não permitiu uma análise fria da obra; na segunda, embora o objetivo da “frieza” no olhar não tenha sido alcançado, foi possível perceber alguns pontos com mais clareza.
Peter Jackson é querido entre a grande parte dos fãs da Terra-média, devido ao seu trabalho à frente da trilogia “O Senhor dos Anéis”, que saiu dos cinemas há mais de uma década como uma das mais premiadas obras cinematográficas da história.
Recebeu mais de 1 bilhão de dólares e um número considerável de estatuetas de Oscar: 17
- — 4 para “A Sociedade do Anel”,
- –2 para “As Duas Torres” e
- –11 para “O Retorno do Rei”.
É possível dizer que, exatamente por esses números, Peter Jackson resolveu adaptar “O Hobbit”, primeiro livro publicado do escritor britânico J.R.R. Tolkien e que narra a história antecedente à de “O Senhor dos Anéis”, para os cinemas.
E, ao assistir, a última parte dessa segunda trilogia da Terra-média, é possível tirar uma conclusão: o diretor neozelandês conseguiu o que queria, afinal fez muito dinheiro e conquistou um lugar na Calçada da Fama. Porém, no caminho, ele também tornou a Terra-média um lugar inabitável para aqueles que lá estiveram com “O Senhor dos Anéis”.
A questão é simples: ao contrário do que fez na primeira trilogia, que levou as pessoas à Terra-média, na segunda, Peter Jackson quis levar a Terra-média às pessoas a fim de adaptar o universo tolkieniano à juventude atual.
O problema é que esta juventude está acostumada com filmes demasiadamente ruins. Essa “adaptação” pode ser vista, por exemplo, na inserção da personagem Tauriel, que não existe nos livros, com o único objetivo de formar um triângulo amoroso com o elfo Legolas e o anão Kili.
O diretor poderia ter sido feliz, se tivesse alcançado seu objetivo. Contudo, até nisso, Peter Jackson falhou. O romance entre os três não tem participação ativa no todo da história; sequer cativa o público. É fraco e chega a ser irritante.
Sem exageros, está no nível de Stephenie Meyer — aquela da saga Crepúsculo. Além disso, o triângulo está a anos-luz das histórias de amor criadas por Tolkien em suas obras, que são fortes e, sem exceção, muito importantes para a narrativa que se desenvolve em torno delas.
O maior exemplo é a história de Beren e Lúthien, um humano e uma elfa, cujo amor foi responsável por uma das maiores vitórias nas guerras das primeiras Eras da Terra-média, narradas em “O Silmarillion”. Sem falar em Aragorn e Arwën, humano e elfa, que se tornaram rei e rainha de Gondor ao fim de “O Senhor dos Anéis: Retorno do Rei”.
O triângulo entre Tauriel, a fictícia, Legolas, o elfo, e Kili, o anão, não só não tem influência alguma na história do filme, como é completamente injustificado, literariamente falando. Não se encontra, em todo o conjunto de obras de Tolkien, uma relação amorosa entre um elfo e um anão.
É possível que Peter Jackson, que também assina o roteiro, tenha se esquecido disso. E não foi por falta de informação, uma vez que os manuscritos de Tolkien usados pelo diretor para inflar a história de “O Hobbit”, tornando-a uma trilogia, são os mesmos que explicam o ódio existente entre anões e elfos e que, portanto, tornam irremediavelmente impossível um romance entre as raças.
O dragão
O dragão Smaug morre logo no início do filme, como era de se esperar. A questão decepcionou a muitos, mas era necessária, uma vez que não haveria a Batalha dos Cincos Exércitos se o dragão não tivesse sido assassinado. Contudo, as lamentações são justificadas, uma vez que, como escrevi na crítica de
“O Hobbit: a Desolação de Smaug”, em 2013, “todos os milhões de dólares gastos na construção do dragão valeram a pena. Cada cent. O dragão é mais real do que os atores que participaram do filme. Além disso, Peter Jackson conseguiu trazer toda a sagacidade de Smaug para as telas. Ponto para ele nessa parte”.
Guerra
A guerra é a razão de ser do filme e os motivos que levam Thorin Escudo de Carvalho a provocar o conflito é forte. Pelo menos isso. Ao reconquistar Erebor, a montanha que serviu de lar para seu povo antes que o dragão Smaug a conquistasse, Thorin é, de imediato, acometido pela ganância sobre a enorme fortuna que há lá dentro.
Em outras palavras, adquire a “doença do dragão”. E uma de suas falas no filme resume a questão:
“Este tesouro não pode ser medido por vidas perdidas”,
diz ele ao companheiro anão Dwalin, quando questionado se não ajudaria os outros anões na guerra que acontecia fora da montanha.
O filme gira em torno do conflito interno de Thorin, que só recupera seu bom senso um pouco antes de entrar na guerra para ajudar a vencê-la. A “doença” do rei anão é um dos pontos fortes do filme, talvez pelo fato de Peter Jackson entendê-la bem.
A diferença é que, ao contrário do diretor, Thorin consegue superá-la, com uma grande ajuda “do” hobbit Bilbo Bolseiro, interpretado brilhantemente pelo ator Martin Freeman — talvez tenha faltado um hobbit na vida do neozelandês.
A “cura” da doença de Thorin guia o filme ao seu ponto alto, uma vez que a Batalha dos Cinco Exércitos — anões, elfos, homens, orcs e águias — é o clímax. Tomada por efeitos especiais, a guerra, embora esteja muito aquém da vista em “O Retorno do Rei”, prende o espectador à tela, fascina a todos e traz novamente aquela Terra-média a que todos estavam acostumados.
O fim
Após a guerra, “O Hobbit: a Batalha dos Cinco Exércitos” tinha tudo para fechar bem a trilogia, mesmo com todos os problemas de adaptação. Diálogos fiéis ao livro; personagens no lugar onde deveriam estar; orcs vencidos; os vilões Azog e Bolg, mortos. Tudo certo e os espectadores prontos para ver os resultados da guerra e a resolução de todos os problemas apresentados até então. O bom seria se Peter Jackson tivesse se lembrado de resolvê-los.
Pontuemos:
- 1) Thorin morre na luta contra Azog, seu caçador desde o primeiro filme da trilogia, a quem também mata. Ele é o Rei Sob a Montanha, dono de todo o vasto tesouro, motivo principal da guerra. Sua morte foi devidamente valorizada, mas não houve funeral. Por quê? O que aconteceu?
- 2) Com a morte do rei e de seus dois herdeiros diretos, os sobrinhos Kili e Fili, alguém deveria assumir o reino de Erebor, sob a montanha. Quem foi? Aqueles que leram o livro sabem que foi Dain, o primo de Thorin, senhor das Montanhas de Ferro, a quem Thorin recorre para ajudá-lo na guerra e cujo exército é parte importante na batalha. Ele aparece no filme e quem assistiu apenas supõe que ele poderá ser o rei.
- 3) Bard, o matador do dragão, o líder do povo de Esgaroth, a Cidade do Lago, um dos principais do filme e parte importante da guerra. O que aconteceu com ele e seu povo? O filme não mostra. A resposta ficou no livro: Bard se torna rei de Valle, a cidade aos pés da montanha, e ajuda o povo a reconstruir a Cidade do Lago. Seria bom ter visto isso no filme.
- 4) Thranduil, o rei élfico, encampou a guerra contra o anões para reconquistar joias pertencentes ao seu povo e que estavam em meio ao grande tesouro dentro da montanha. Porém, ao ver a morte de tantos dos seus, o elfo praticamente desiste de seu objetivo principal. Ele consegue as gemas brancas, ou apenas volta para seu reino na floresta, após a guerra? Não se sabe, uma vez que Thranduil termina sua participação se despedindo do filho Legolas.
- 5) Falando em Legolas, o que acontece com Tauriel, sua amada e motivo de sua partida? A personagem termina com o anão Kili nos braços lamentando sua morte para Thranduil. Acontece que o rei élfico a havia banido de seu reino. Com a partida de Legolas, e sua “reconciliação” com o rei, terá ela voltado para o reino dos elfos, ou partido também para outro lugar? Adivinhem: só Peter Jackson sabe.
- 6) Na despedida entre Bilbo e Gandalf, já às portas do Condado, o Hobbit carrega um baú. O que tem nele? Será que os anões, de fato, concederam uma parte do tesouro para Bilbo como o prometido? Ou esse baú faz parte do tesouro encontrado por eles na caverna dos trolls no primeiro filme, “Uma jornada inesperada”? Ah, meus caros, também não se sabe.
Ou seja, a “doença do dragão” de Peter Jackson deixou-o com febre e isso fez com que esquecesse como se faz um bom filme. O diretor disse certa vez, em uma entrevista, que geralmente só assiste a seus filmes depois de 20 anos. Talvez, se tivesse assistido “O Retorno do Rei”, ele se lembraria da coroação de Aragorn, do reconhecimento atribuído aos hobbits — Frodo, Sam, Pippin e Merry — e do anúncio de paz na Terra-média. Pois esse foi o resultado da jornada que motivou a trilogia de “O Senhor dos Anéis”.
Em “O Hobbit”, não houve fim. Todos saem do cinema com a sensação de que há algo inacabado. Essa pode ter sido a intenção? Até pode, visto que o derradeiro fim de “A Batalha dos Cinco Exércitos” faz um retorno à primeira cena de “A Sociedade do Anel”, como a criar uma hexalogia, nos moldes do que George Lucas fez com Star Wars. Porém, faltou. Algo ficou por terminar.
Como bem disse J.R.R. Tolkien em uma carta enviada a Forrest J. Ackerman, em junho de 1958, “o fracasso de filmes ruins com freqüência está precisamente no exagero e na intrusão de material injustificado que se deve a não-percepção de onde o núcleo do original se situa”. À época, Tolkien criticava justamente uma adaptação de “O Senhor dos Anéis” para o cinema. É impossível não pensar que ele teria uma opinião semelhante em relação ao “O Hobbit” de Peter Jackson.
Por esses motivos, mesmo que Peter Jackson tenha conquistado um lugar na Calçada da Fama, ele provavelmente não ganhará outro Oscar. É importante dizer que o filme não é um fracasso completo, pois há muitos pontos positivos. Tanto que assisti duas vezes e, provavelmente, comprarei as versões estendidas em DVD/Blu-ray.
Porém, infelizmente, é necessário dizer: ainda bem que a jornada da Terra-média chegou ao fim nos cinemas.



