Todos Falam, Ninguém Escuta:
A Tragédia Brasileira do Século XXI
Alguém que nos conceda a graça de sermos, simplesmente, ouvidos.

Nelson Rodrigues, esse cronista implacável da alma brasileira, dizia que a maior utopia do nosso povo não é o amor, nem o dinheiro, nem a revolução.
É um ouvinte.
Sim, alguém capaz de escutar sem a pressa de interromper, sem o vício da réplica, sem a ansiedade de aparecer.
Alguém que nos conceda a graça de sermos, simplesmente, ouvidos.
Esse detalhe aparentemente banal carrega uma força descomunal.
Porque ser ouvido é mais do que um gesto de cortesia: é o reconhecimento da nossa dignidade.
É a validação de que existimos.
Nelson repetia: santo é o que ouve.
E talvez seja por isso que a própria imagem de Deus, em tantas tradições, é a de um ouvido absoluto, aquele que não perde um só rumor de nossa vida profunda.
Mas a sociedade contemporânea parece ter perdido essa noção elementar.
Hoje, confundimos falar com existir.
Daí o desespero que se vê nas redes sociais: todos gritam, ninguém escuta.
Cada um falando para dentro da sua bolha, a esquerda para a esquerda, a direita para a direita, e no meio um silêncio ensurdecedor.
O diálogo morreu, substituído por uma guerra de monólogos.
O mesmo Nelson, que não temia chamar o Brasil de “uma pátria de idiotas”, provavelmente olharia para esse espetáculo digital e concluiria que nos tornamos um país de surdos — e de surdos que falam demais.
Nunca fomos tão capazes de nos expor e, paradoxalmente, nunca estivemos tão distantes de nos escutar.
Não por acaso, ele dizia:
Toda unanimidade é burra.
O que vemos nas redes é exatamente isso: a busca ansiosa por unânimes curtidas, ainda que à custa da inteligência.
Essa lógica da performance, em que importa mais aparecer do que compreender, não se limita ao universo virtual. O mundo profissional a reproduz com perfeição.
O tão exaltado networking virou teatro.
O que deveria ser espaço de encontro autêntico, tornou-se ritual de encenação.
Nos eventos, as pessoas não se encontram: se exibem.
Não dialogam: trocam performances.
É o espetáculo da autopromoção, onde cada conversa vira oportunidade calculada, cada sorriso vira ferramenta de ascensão.
E, quando todos aceitam as regras desse jogo, instala-se a doença.
Ninguém confia em ninguém.
Colaboração se transforma em competição disfarçada.
O genuíno passa por ingênuo, a transparência por fraqueza.
Todos interpretam personagens, mas ninguém ousa mostrar o rosto.
O custo invisível é imenso: ambientes tóxicos, profissionais emocionalmente distantes, vidas drenadas pela performance contínua.
O mais trágico, porém, é perceber que essa mesma lógica contaminou a política.
Nossos representantes, tanto de esquerda quanto de direita, converteram-se em atores de uma tragicomédia interminável.
Nas tribunas e nas redes sociais, vivem de frases ensaiadas, indignações coreografadas, virtudes sinalizadas para as suas bolhas.
Não buscam o diálogo, mas o aplauso imediato.
Não falam com o povo, mas com seus seguidores.
É a política reduzida a marketing, as instituições transformadas em cenários, os discursos em roteiros.
Nelson, com sua ironia ferina, provavelmente diria que o Congresso se tornou uma novela ruim, e que os políticos, “canalhas metafísicos”, fazem do país um palco de tragicomédias sem fim.
E não estaria errado.
O debate público brasileiro hoje não é debate: é espetáculo.
Não se procura a verdade, mas a melhor atuação.
Ele mesmo já alertava:
A corrupção não é uma invenção brasileira, mas a impunidade é uma coisa muito nossa.
E o que vemos hoje é a impunidade disfarçada de espetáculo moralista.
E aqui está a raiz do problema: quando a sociedade se organiza em torno da performance, a escuta se torna um ato revolucionário.
Escutar é subversivo porque interrompe o teatro.
Escutar é devolver humanidade ao outro.
É dizer: você não é apenas mais uma voz no ruído, você é alguém que merece ser levado a sério.
Isso vale para as redes sociais, para o trabalho, para a política e para a vida pessoal.
Escutar exige coragem, porque implica baixar a guarda.
É mais fácil fingir interesse do que se abrir ao outro.
É mais confortável performar do que se arriscar na vulnerabilidade de uma escuta verdadeira.
Mas é apenas no espaço do silêncio atencioso que nascem a confiança, a colaboração e até a fé.
Talvez seja essa a lição de Nelson que esquecemos: a dignidade começa quando alguém se dispõe a nos ouvir.
Sem isso, tudo o que nos resta são encenações baratas, redes de contatos sem contato, discursos sem interlocutores, políticas sem povo.
Como ele próprio ironizou:
Sem paixão, não dá nem para chupar um picolé.
E talvez possamos adaptar: sem escuta, não dá nem para começar uma democracia.
E a pergunta que nos sobra, a cada dia, é quase infantil: estamos realmente ouvindo alguém?
Ou apenas esperando a nossa vez de falar?
O país dos surdos talvez ainda tenha salvação.
Mas só se descobrirmos, antes que seja tarde demais, que santo não é quem fala bonito.
Santo é o que ouve.
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Por: Rodrigo Schirmer Magalhães
Cientista político e Analista de Politica
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