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Como Reino Unido e Estados Unidos lidam com os danos do jogo de azar à saúde?

‘Estadão’ mergulha nas experiências de outros países para entender como apostas são regulamentadas e os impactos na saúde pública

Por causa da pandemia de covid-19,

pode ser tentador para os governos utilizar a expansão dos jogos e suas receitas subsequentes para recuperar recursos, o que será uma prioridade com a depressão econômica iminente,

diz um editorial publicado em 2020 na revista científica Public Health e assinado por pesquisadoras como Heather Wardle e Gerda Reith, da Universidade de Glasgow, na Escócia.

O texto integra uma edição especial sobre problemas relacionados ao jogo, num momento em que alguns estudiosos viam

uma epidemia dentro de uma pandemia.

Precisamos focar nas pessoas, não nos cofres, alertam.

Três anos depois, Gerda participou de um esforço para mapear e avaliar todas as jurisdições que haviam implementado mudanças significativas na legislação de jogos entre 2018 e 2021, publicado na célebre The Lancet Public Health.

A data de início é simbólica, pois trata-se do ano em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu o transtorno do jogo — no qual o apostador perde a aptidão em gerir o tempo e o dinheiro gasto apesar das consequências negativas — como um problema de saúde pública, e o colocou no grupo de transtornos relacionados ao uso de substâncias, como álcool e outras drogas.

A descoberta foi surpreendente, embora não totalmente imprevisível: mais de 80% dos países em todo o mundo agora permitem legalmente algum tipo de jogo de azar.

Sabíamos que o cenário estava mudando rapidamente e era uma tendência, mas a velocidade com que isso aconteceu me surpreendeu,

diz Gerda, que integra um painel da OMS sobre jogos de azar, ao Estadão.

Há partes do mundo onde as pessoas têm mais acesso à tecnologia de telefonia móvel e ao jogo de azar do que à água potável.

Há partes do mundo onde as pessoas têm mais acesso à tecnologia de telefonia móvel e ao jogo de azar do que à água potável.

Gerda Reith, professora e pesquisadora d a Universidade de Glasgow

Pesquisadores de vários países ouvidos pela reportagem acham que isso ocorreu por uma convergência de fatores: o avanço das tecnologias de comunicação e informação, que conectam o mundo e permitem que a aposta online chegue a países onde o jogo de azar é proibido, obrigando uma resposta ao mercado ilegal — considerado muito perigoso; a pandemia, que obrigou a indústria do jogo a se reorganizar, focando ainda mais no campo digital, e isolou pessoas em casa; e, sobretudo, a consolidação e evolução das apostas esportivas online, conhecidas como bets.

As mudanças recentes nas legislações sobre jogo de azar, porém, parecem desconsiderar o jogo de azar também como um problema de saúde pública, escreveram as pesquisadoras. Ou seja, que há fatores além dos individuais para o desenvolvimento do jogo problemático, e que ele tem impactos sociais e econômicos amplos. A visão de saúde que apresentam é bastante individualista.

Os danos foram comumente enquadrados como afetando apenas uma minoria de indivíduos considerados irresponsáveis, por exemplo, os chamados jogadores problemáticos.”

Pouco reconhecimento foi dado ao contínuo de danos causados pelo jogo ou a danos a terceiros, apesar das evidências de pesquisas de saúde pública sobre jogos de azar, acrescentam.

Um relatório do Citizens Advice, uma organização sem fins lucrativos do Reino Unido, por exemplo, destaca que os prejuízos não ficam restritos ao jogador patológico: para cada um deles, entre seis e dez pessoas, incluindo familiares, amigos e a sociedade em geral, são afetadas.

Para Gerda, o reconhecimento do jogo como um problema de saúde pública exige regras claras sobre questões como promoção e publicidade de apostas; limite para valor apostado, perdas e prêmios; e restrições de idade rigorosas e verificáveis. E tudo isso precisa ser fiscalizado e punido não apenas com multas, mas com sanções como a revogação de licença.

As regras, porém, precisam considerar o contexto cultural de cada país.

O Estadão conversou com especialistas de diferentes locais para entender como diferentes lugares do mundo regulam o mercado de apostas, e quais foram os efeitos dessas regras em termos de saúde pública.

Tensão britânica
O mundo tende a olhar para o Reino Unido como um exemplo de boas políticas públicas.

Para Heather, talvez esse não seja o caso quando o assunto é o mercado de apostas.

Há muitas e muitas coisas que precisam ser aperfeiçoadas e mudadas.

O principal é que a legislação atual contém uma tensão que não pode ser resolvida.

Ela quer, ao mesmo tempo, fazer a indústria da aposta crescer (ao liberar a publicidade, por exemplo), e proteger crianças e outras pessoas mais vulneráveis a danos.

Mas não reconhece que o modelo econômico de muitos setores da indústria de apostas, como os cassinos online, com

seus caça-níqueis e jogos de fruta, depende dos lucros obtidos com pessoas que sofrem danos com o jogo, completa.

O modelo econômico de muitos setores da indústria de apostas, como os cassinos online, com seus caça-níqueis e jogos de fruta, depende dos lucros obtidos com pessoas que sofrem danos com o jogo

Heather Wardle, professora e pesquisadora da Universidade de Glasgow

Se não é um exemplo no que tange à legislação, o Reino Unido é um bom caso para entender a extensão que os danos podem tomar, já que legalizou o jogo de azar nos anos 1960.

Na época, tratava-se de uma atividade feita às sombras, sem grande visibilidade, com casas de apostas com vitrines tampadas e sem permissão de publicidade.

Tudo isso muda com o Gambling Act 2005, que entrou em vigor em 2007.

Segundo pesquisadores, o ato equiparou as apostas a qualquer outro tipo de atividade de lazer, como ir ao cinema; criou um órgão regulador, a Gambling Commission; e permitiu a publicidade.

O objetivo do governo, dizem, foi consolidar o Reino Unido como um líder mundial do mercado de jogos de azar, em especial na oferta digital.

Uma compreensão mais ampla do jogo de azar como um problema de saúde pública, contudo, é relativamente recente, data de cerca de oito ou nove anos. Esse é um dos motivos pelos quais não há dados de qualidade sobre o avanço de problemas relacionados ao jogo de azar.

Pouco financiadas e com metodologias diferentes, os resultados das pesquisas não são comparáveis.

Eu conduzia um estudo que costumava coletar e monitorar esses dados, mas ele foi cancelado (pelo governo) em 2010. Mas, antes disso,

tínhamos algumas evidências de que os danos estavam começando a aumentar, e dissemos que precisávamos monitorar essa tendência, conta Heather.

De acordo com o último relatório da Gambling Commission, nos últimos 12 meses, 61% dos adultos participaram de qualquer forma de jogo, com 40% apostando em atividades diferentes de sorteios de loterias nacionais — que ficam entre as menores taxas de transtorno de jogo.

Os dados mostram que a proporção de jogadores problemáticos é de 2 a 3 vezes maior para apostas online em esportes ou corrida do que a média; e é de 4 a 5 vezes maior para jogos de cassino online.

A literatura global aponta que a prevalência de transtorno do jogo — ou seja, a ponta do iceberg, quando a pessoa é diagnosticada com uma adicção — varia de 1% a 3%.

No Reino Unido, a estimativa da Gambling Commission é de 2,5% — e outros 3,7% apresentam um comportamento de risco moderado. Heather, porém, alerta que essa estatística pode levar a conclusões enganosas, afinal, considera toda a população adulta, mesmo quem não joga.

Esses dados populacionais obscurecem o risco de danos entre aqueles que usam tipos específicos de produtos e os que utilizam com mais frequência.

Quando se olha por esse ângulo, você descobre estimativas diferentes, como, por exemplo, que 15% das pessoas que jogam em cassinos online experienciam danos relacionados ao jogo, afirma.

Segundo a Gambling Commission, são várias as consequências adversas das apostas para indivíduos, famílias e sociedade. Os danos mais relatados são: rompimento de relacionamento (1,6% dos jogadores apontaram isso); perda de algo de valor significativo (1,4%); experiência de violência ou abuso (1,1%); e cometimento de algum crime (0,8%).

Embora o jogo não seja permitido para menores de idade, cerca de 55 mil crianças entre 11 e 16 anos têm problemas com jogos de azar, e outras 99 mil são classificadas como jogadoras “em risco”.

Com jogos online, os jovens encontram diversas formas de burlar as restrições, como acessar a conta dos pais, com ou sem permissão.

Entrevistei um pai que disse que o filho usava a conta do PayPal dele e trocava a senha, para impedi-lo de acessar, conta Heather.

Em meio à demanda crescente por tratamento, o Serviço Nacional de Saúde (NHS) — o “SUS” do Reino Unido — anunciou a criação de mais uma clínica específica para atender transtorno do jogo. Agora são 15.

Mesmo assim, para especialistas, o Reino Unido ainda não está preparado para enfrentar o desafio de saúde pública gerado pelo amplo acesso a jogos de azar.

Algumas características do jogo tornam as apostas mais arriscadas (para a saúde).

Por exemplo, quando eles são rápidos e contínuos.

E o jogo online carrega esses aspectos, explica Gerda.

 

Há uma falta de conscientização entre os médicos de clínica geral sobre os danos do jogo, atenta Heather.

Em alguns países, o transtorno do jogo é chamado de

vício oculto, afinal, não temos jogadores com olhos vermelhos e cheiro de álcool às 7h de um dia útil.

As pessoas se apresentam (no consultório) com depressão, ansiedade, problemas de saúde, dos quais a causa subjacente é o jogo.

Mas o médico trata a depressão, a ansiedade, os outros problemas, e nunca chega à causa.

Porque, a menos que você pergunte especificamente sobre isso, nunca vai descobrir.

Segundo Gerda, o trabalho de conscientização com os profissionais do NHS já começou, mas o quão efetivo vai ser ainda é uma questão.

O NHS já está incrivelmente subfinanciado.

Mesmo que a conscientização entre os clínicos seja bem-sucedida, e isso é um grande se, as instituições estão sobrecarregadas

e simplesmente não vão ter o tempo ou os recursos para adicionar o jogo à lista de coisas com que precisam lidar.

O caso americano e a falta transparência
A relação dos Estados Unidos com apostas vai muito além de Las Vegas.

Como o setor é regulamentado em nível estadual, o cenário varia de Utah, onde não há permissão para nenhum tipo de jogo de azar, até Nevada, que permite quase tudo, exceto loterias.

Além dos 50 Estados, existem centenas de tribos que possuem soberania limitada e podem decidir operar jogatinas sob as próprias regras.

Temos mais de 300 jurisdições diferentes.

Uma das consequências disso é que temos poucas ou nenhuma medida comum de proteção ao consumidor.

É muito difícil quando você tem diferentes idades mínimas (para poder jogar), restrições para publicidade e medidas de jogo responsável,

comenta Keith Whyte, diretor-executivo do National Council on Problem Gambling (NCPG), a mais antiga organização norte-americana sem fins lucrativos de defesa dos jogadores problemáticos e suas famílias.

A situação começou a tomar uma proporção preocupante em 2018, quando a Suprema Corte determinou que uma lei de 1992, que proibia apostas esportivas, exceto em Nevada — o que abriu um precedente —, era inconstitucional. A partir daí, começaram a pipocar legalizações e a crescer o número de problemas com apostas.

Entre 2018 e 2021, vimos o risco de problemas com o jogo dobrar aproximadamente em todo o País, diz Whyte.

Segundo um relatório encomendado pelo NCPG, o número de pessoas que experimentaram pelo menos um dos quatro comportamentos problemáticos com apostas

muitas vezes aumentou de 7%, em 2018, para 11%, em 2021. Um aumento de aproximadamente oito milhões de pessoas, diz o documento.

A NCPG é neutra quanto à legalização de apostas e tem por objetivo ajudar os Estados a criar regras que protejam os jogadores problemáticos e outros grupos vulneráveis.

Um grande desafio, porém, é a falta de dados que subsidiem políticas baseadas em evidências. Whyte defende que o governo federal precisa fazer levantamentos nacionais para entender melhor as tendências de jogo problemático no País.

Outro grande desafio é a publicidade, que é autorregulada.

Sem dados, financiamento e recursos, não temos como criar uma política de publicidade baseada em evidências, fala.

Ele destaca que um nível de informação importante viria da própria indústria: bancos de dados sobre publicidade e marketing.

Não estamos pedindo informações pessoais, mas um agregado sobre quantos interagem com as postagens, quantos são menores de idade, as diferenças geográficas.

A questão, diz, é entender se o marketing segue os regulamentos e atinge só adultos.

A indústria tem todas as ferramentas de que precisa para mostrar que está sendo responsável.

Mas, ao não fornecer esses dados, convida à crítica, à suspeita e mais regulamentação.

Uma revisão da Universidade de Bristol, na Inglaterra, analisou as redes sociais de quatro grandes casas de apostas dos Estados Unidos entre 29 de julho e 4 de agosto de 2024, período de pré-temporada da National Football League (NFL).

De quase 1,7 mil anúncios de jogos de azar, 81% eram orgânicos, em oposição aos pagos, e a maioria deles (58%) não era claramente identificável como publicidade.

Três quartos dos anúncios orgânicos estudados não continham mensagens de jogo responsável ou linhas diretas de ajuda, e 8% foram considerados potencialmente atraentes para crianças.

As principais bandeiras de trabalho do NCPG são estimular o jogo responsável — que inclui deixar claro que toda aposta carrega um risco — e adiar a idade com a qual as pessoas começam a apostar. Financiados pela NFL, eles apoiam iniciativas com crianças e adolescentes nas escolas.

Décadas de pesquisa nos mostram que quanto mais cedo um jovem começa a jogar, maior a probabilidade de ele ter um

problema com o jogo e maior a probabilidade de esse problema ser grave, explica Whyte.

O objetivo principal das interações nas escolas é desmistificar a ideia de que

todo mundo está apostando”

já que, se a maioria dos colegas de escola faz algo, é maior a chance de outros colegas quererem fazer o mesmo.

Mesmo se a maioria do seu grupo de amigos disser que joga, a maioria dos jovens não joga regularmente, reforça Whyte.

Essa foi uma lição que eles aprenderam com outras adicções.

Nacionalmente, a maioria dos jovens não consome álcool regularmente,

mas, quando são feitas pesquisas e perguntam a esses jovens, grande parte deles diz que os colegas consomem.

A NCPG também passa mensagens sobre como apostadores costumam subestimar perdas e superestimar ganhos, e trabalha no fortalecimento de laços de amizade e vínculos familiares dos jovens, fatores reconhecidos como protetores.

Por Leon Ferrari


No Reino Unido, a partir de 2007, por causa do Gambling Act, as apostas foram equiparadas a qualquer outro tipo de atividade de lazer, como ir ao cinema Foto: Wendy/Adobe
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  • Gildo Ribeiro

    Gildo Ribeiro é editor do Grupo 7 de Comunicação, liderado pelo Portal 7 Minutos, uma plataforma de notícias online.

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