Carnaval em Opinião
O Carnaval da Amnésia Nacional
Ah, o Carnaval brasileiro, essa gloriosa festa onde o país resolve esquecer que é, bem, o Brasil.

Quatro dias – ou uma semana, dependendo da intensidade da sua “folia” – em que milhões de pessoas se entregam a uma catarse coletiva de suor, glitter e samba.
Não importa se a conta de luz está atrasada, se o aluguel está dois meses pendurado ou se o feijão subiu de novo.
Afinal, quem precisa de dignidade quando se tem abadá parcelado em 12 vezes no cartão?
Enquanto multidões invadem as ruas em um frenesi de álcool, corpos suados e axé, a realidade observa de canto, com aquela cara de deboche, como quem diz:
Vão, curtam agora.
Segunda-feira eu volto com juros.
É quase poético – se não fosse trágico – ver o mesmo povo que passa o resto do ano reclamando da vida agora cantando
Vou festejar o teu sofrer, o teu penar como se fosse um mantra existencial.
Nas ladeiras de Olinda, nos blocos de São Paulo ou no sambódromo do Rio, a alegria é proporcional ao tamanho do buraco social que todo mundo resolveu ignorar.
Os mesmos que pulam no Carnaval provavelmente pisaram em esgoto a céu aberto para chegar ao bloco, mas quem está ligando?
“É o Brasil!” – dizem, como se isso fosse uma justificativa cósmica para a contradição mais grotesca possível.
Não é coincidência que os estados mais miseráveis do Brasil – como Bahia e Pernambuco – sejam também os que mais cultuam o Carnaval.
O som dos tambores abafando a fome, o samba mascarando a miséria, enquanto o suor coletivo escorre pelas ruas que carecem até de saneamento básico.
É o “pão e circo” moderno, só que sem o pão, e com o circo custeado por quem mal tem onde cair morto.
E, claro, há a gloriosa abundância de álcool, aquele amigo fiel que transforma qualquer beco escuro e sujo em “o melhor lugar do mundo”.
Cerveja na mão, o brasileiro transforma o caos em poesia.
Ali, no meio da folia, ninguém lembra que vive em um dos países com os maiores índices de homicídios do planeta.
Até porque, no Carnaval, as balas perdidas fazem uma pausa para sambar.
E as fantasias?
Ah, as fantasias!
Criativas, baratas e muitas vezes recicladas.
Mas aqui vai a ironia: enquanto uns se vestem de super-heróis e divas pop, o verdadeiro teatro acontece no Congresso Nacional, onde o bloco da corrupção desfila o ano inteiro.
Só que ninguém liga, porque político ladrão não tem glitter.
E o sexo?
Bem, a folia carnal é quase uma tradição sagrada, uma espécie de purificação pagã onde tudo é permitido – até a suspensão temporária da lógica.
Transar em um país onde milhões não têm nem banheiro para lavar as mãos depois é quase uma performance de resistência.
“Tem camisinha?”, pergunta alguém no bloco.
“Não, mas tem carnaval!”
E isso basta.
Enquanto isso, as escolas de samba fazem seu show, gastando milhões em carros alegóricos que brilham mais que qualquer poste de luz na periferia.
É um espetáculo, sim, mas também é um lembrete doloroso de que, no Brasil, a única coisa que funciona com precisão suíça é a ilusão.
O Carnaval também é um reflexo cruel da nossa tragédia educacional.
Em um país que ocupa os piores lugares nos rankings de educação do mundo, não chega a ser surpresa que boa parte da população prefira dedicar sua energia à folia em vez de questionar por que os livros e as salas de aula seguem tão negligenciados.
É mais fácil decorar marchinhas do que enfrentar uma alfabetização precária.
A festa vira um analgésico coletivo, um lembrete brilhante e passageiro de que, na área da educação, nosso desfile está sempre atrasado.
Mas a festa não para por aí.
Não podemos esquecer o papel da mídia nesse enredo grotesco.
Ela é a narradora oficial do Carnaval, exaltando a “magia do povo brasileiro” enquanto deixa de lado o noticiário sobre censura, perseguição política e a constante erosão da liberdade de expressão.
Afinal, nada desvia melhor a atenção das manchetes inconvenientes do que uma multidão suada cantando marchinhas.
E assim, o Carnaval cumpre sua função histórica: distrair.
É a versão brasileira do “pão e circo”, só que agora digitalizado e patrocinado por grandes marcas.
A alegria carnavalesca vira capa de jornal, enquanto nas páginas internas ninguém lê sobre os escândalos que se acumulam no poder.
Enquanto o glitter cobre as ruas, quem pensa em corrupção?
Quem pensa em fome?
Quem pensa?
E assim, entre um gole de cerveja e outro, o brasileiro segue firme e forte.
Esquecendo que os índices de educação são dignos de um samba-enredo de horror, que o saneamento básico ainda é uma utopia e que a censura ameaça qualquer voz dissonante.
, no Carnaval, a única coisa básica que importa é o glitter.
Mas calma, não sejamos tão duros.
O Carnaval, afinal, é uma válvula de escape.
Só que talvez o problema esteja aí: escapamos tanto que esquecemos de voltar.
A ressaca de quarta-feira de cinzas deveria ser um convite para refletir sobre tudo isso, mas… ah, quem estamos enganando?
Quinta-feira já tem bloquinho.
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Por: Rodrigo Schirmer Magalhães
Cientista Político
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