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MEMÓRIA

O trem que partiu e que nunca mais voltou

Transporte ferroviário de passageiros foi realidade no DF durante 24 anos

A preços acessíveis, o transporte ferroviário levava e trazia pessoas do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.

Quem vivenciou esse vai e vem guarda boas memórias

Em abril de 1968, uma reportagem do Correio anunciava a inauguração da estação Bernardo Sayão, no Núcleo Bandeirante, e a chegada do primeiro trem de passageiros à capital. A locomotiva, que estacionou ao som da música

A banda, de Chico Buarque, saiu do Rio de Janeiro, passou por Campinas (SP) e, em 40 horas, chegou a Brasília, com uma comitiva de 100 pessoas, entre políticos, militares, engenheiros e jornalistas.

Foi um dia de festa.

Não se conhece a razão, mas criou-se no espírito do brasiliense uma mentalidade ferroviária que o fez delirar com a chegada do primeiro trem.

Quando o comboio foi entrando na estação, houve o frenesi de uma enorme plateia que chorava, batia palmas, ria, gritava, vivia, enfim, um momento de uma emoção incontrolada,  descreve um trecho da reportagem.

Em 1973, saíam da estação cinco trens por semana com destino a São Paulo e Belo Horizonte, com uma média semanal de 300 passageiros, sendo computados 2.700 viajantes em dezembro daquele mesmo ano, segundo informações da dissertação Os trilhos de Brasília, de Fernanda Reis Ribeiro.

O cenário de vivacidade mudou a partir de 1992, quando o trem Bandeirante fez sua última viagem levando passageiros. Às estações, restou o abandono.

Memórias

A paixão pelos trilhos esteve presente na vida de Hélio Claudino  desde a infância.

Com avô, tio, pai e irmão ferroviários, seu destino não poderia ser diferente.

Em 1970, ele saiu de Goiandira (GO) para trabalhar na manutenção da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), estabelecendo-se na estação Ingá, em Luziânia.

Saudoso, Hélio Claudino   ainda guarda o uniforme e o capacete dos tempos áureos na ferrovia.

Quando se aposentou por tempo de serviço como chefe da estação, em 1996, foi chamado para encarregar-se de outros trilhos.

Dessa vez, no metrô.

Lá, atua como coordenador da equipe de manutenção.

Tenho orgulho de bater no peito e dizer que fui ferroviário.

Foi essa profissão que me permitiu ter um lar e sustentar minha família.

Também fiz muitos amigos, conta Hélio, mostrando a camiseta do 3° Encontro dos Amigos Ferroviários da RFFSA, ocorrido em 2024.

Deus tem levado muitos de nós nesses últimos anos.

Então, resolvemos nos reunir sempre que possível para celebrar o amor pela profissão, completa.

Além do uniforme e do capacete, o ex-chefe de estação guarda antigas fotografias, recortes de reportagens e até os cadernos que usava para estudar.

Quem não aprendia geometria de ferrovia não se tornava um ferroviário autêntico, garante.

Para chegar à estação Ingá, onde Hélio trabalhou, basta abrir o portão dos fundos de sua casa. Lá está a linha do trem.

Era só cada filho sair da maternidade para eu os trazer à beirada da linha para escutarem a buzina do trem.

Todos os quatro foram criados com essa vista, recorda.

Enquanto chefe da estação, ele era responsável por 63 km de linha e circulava entre os postos de Bernardo Sayão e Calambau, localizado em uma área rural de Luziânia.

Aos 77 anos, Hélio tem memória que não o trai.

Recorda-se de nomes, trechos específicos da ferrovia e a quantidade exata de vagões em cada linha.

O trem Bandeirante, por exemplo, contava com 14 “carros”, enquanto o NBH — que fazia o trajeto noturno para Belo Horizonte —, 12.

Cada vagão levava, em média, 52 passageiros e, cada estação era composta de dois agentes e três manobradores.

Os trens viajavam a 70 km/h.

Das recordações que menos gosta de lembrar está o dia em que foi informado sobre a desativação do transporte de passageiros.

“Foi um choque. Fiquei inconformado, pois era um serviço que atendia bem a comunidade. Mas disseram que era deficitário”, lamenta.

Atualmente, os linhas funcionam apenas para o transporte de cargas.

Abandono

A estação Ingá, em ruínas, acumula lixo, animais mortos e vestígios de um incêndio.

Virou o espaço ideal para alimentar a criminalidade, conta Hélio, que observa a movimentação de dependentes químicos no local.

Até assassinato já aconteceu, destaca.

Na estação Bernardo Sayão, no Núcleo Bandeirante, o abandono também é visível.

Parte do letreiro se foi e bancos que antes acomodavam passageiros à espera da viagem estão danificados.

Há, no entanto, varais de roupas, um carro estacionado e algumas bicicletas.

O local abriga atualmente cinco famílias.

Uma delas é a do ex-ferroviário Sebastião Picolo, 65, que trabalhava como assistente de manobra na Rodoferroviária de Brasília.

Natural de Pires do Rio (GO), ele prestou concurso para trabalhar no setor e, em setembro de 1981, mudou-se para Brasília.

Foi meu primeiro emprego. Era pesado e perigoso, mas eu gostava, sinto saudades, comenta.

 

Aos trabalhadores que vinham de outros estados, muitos de Goiás, foram oferecidos alojamentos de madeira.

Depois, por conta das más condições desses lugares, pude me estabelecer aqui, acrescenta.

No espaço, Sebastião vive com a esposa e dois gatos. Hoje, tem pouca simpatia por Brasília.

Muito barulho do movimento nas estradas. É estressante, diz, referindo-se à Estrada Parque Vicente Pires (EPVP), que fica próxima à estação.

Segundo o estudo sobre as ferrovias de Brasília, de Fernanda Reis Ribeiro, “os trens eram de aço inoxidável, com ar-condicionado, poltronas reclináveis, carros pullman 18, restaurante e dormitório.

Os passageiros podiam optar por bilhetes de primeira e segunda classe, em pullman ou leitos (superior e inferior) com preços que variavam de 4,69 a 20,45 cruzados novos, a depender do trecho e classe escolhidos”, descreve o artigo.

Em época de férias e festas de fim de ano, o movimento multiplicava.

As passagens vendiam em meia hora e, se o bilheteiro não encerrasse logo as vendas, dava até briga.

Eram viagens acessíveis, lembra Sebastião.

Na Rodoferroviária e em algumas estações, era comum o comércio de lanches, doces, jornais e revistas.

O assistente de manobra trabalhou nas ferrovias até 1996, quando foi aposentado por invalidez.

Sobre o fim do transporte de passageiros, ele foi breve:

Coisa de governo, não é?

Acho que não dava lucro, mas para a população era ótimo, todo mundo gostava.

Promessas

Desde a última viagem do trem Bandeirante, em 1992, não faltaram promessas de promover a mobilidade urbana sobre trilhos, ora entre Brasília e Goiânia, ora entre Brasília e Luziânia (GO) — o Expresso Pequi.

Mais tarde, já no governo de Ibaneis Rocha (MDB), prometeu-se colocar em operação o Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), também entre Brasília e Luziânia.

Questionada sobre as atualizações acerca dos estudos referentes ao VLT, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), vinculada ao Ministério dos Transportes, informou que o trecho Brasília-Luziânia é considerado prioritário e que a entrega dos estudos referentes a essa ligação está prevista para o primeiro semestre deste ano.

O secretário de Transporte e Mobilidade do DF, Zeno Gonçalves, ressaltou que a pasta tem dado apoio ao funcionamento da linha.

Entendemos que toda iniciativa visando atender a esses usuários (moradores do Entorno) é importante para o transporte coletivo local, por isso tem todo o apoio da Semob, disse.

Para o ex-ferroviário Hélio Claudino, um trem de passageiros iria favorecer a situação de quem se desloca todos os dias para o centro da capital, além de ser um meio de transporte mais seguro e barato.

Vou a Brasília quase todos os dias e posso afirmar que as BRs não comportam mais tantos carros.

Estão superlotadas.

Muitas empresas no DF já não contratam mais funcionários que moram no Entorno, porque fica caríssimo bancar a passagem.

É uma tristeza vermos as ferrovias acabarem, lamenta.

 

Palavra de especialista

Desencontro de estratégias

O Brasil já foi um país ferroviarista.

No início dos anos 1960, por exemplo, tínhamos 39 mil km de ferrovias.

o DF, os trens eram disputados, tanto que se dizia haver poucos carros ofertados para a quantidade de passageiros.

Com a política de estímulo à implantação de uma indústria rodoviária por JK, pelos governos militares e todos os governos democráticos, as ferrovias foram abandonadas para não concorrerem com os automóveis.

A volta dos trens de passageiros seria muito importante, pois reduziria o tráfego nas estradas e no transporte aéreo, além do número de mortos e feridos em estradas.

Mesmo que sejam veículos mais lentos, são mais confortáveis.

E vale lembrar que o trem não precisa levar somente passageiros, sendo possível pensar em cargas mistas, como encomendas e bagagens.

É preciso vontade política para enfrentar o lobby das empresas de ônibus, das montadoras de automóveis, dos postos de gasolina, das empreiteiras do asfalto, que têm atuado em conjunto em Brasília e no Brasil, para impedir o retorno do transporte ferroviário de passageiros e cargas mistas.

Por Carlos Penna Brescianini, pesquisador em mobilidade urbana

Por: Letícia Mouhamad

Para relembrar 

 

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A chegada da primeira locomotiva, em 1968, encantou os moradores da capital – (crédito: arquivoCB/CB/D.A Press)
O ex-ferroviário Hélio Claudino acredita que um novo trem ajudaria a população a se deslocar para o centro da capital
(foto: Ed Alves/CB/DA.Press)
A estação Ingá, em Luziânia, sofre com o abandono, que dá lugar à criminalidade   (foto: Ed Alves/CB/DA.Press)
Estação Bernado Sayão sofre com abandono, mato alto pichações e janelas quebradas Ed Alves / CB/DA Press
Jose-Matias-Rezende  Ele entrou para a RFFSA em 1945. Começou trabalhando na construção de linhas férreas, em São João Del-Rei, sua terra natal. Menos de dez anos depois chegou ao posto de maquinista. Arquivo pessoal
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  • Gildo Ribeiro

    Gildo Ribeiro é editor do Grupo 7 de Comunicação, liderado pelo Portal 7 Minutos, uma plataforma de notícias online.

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