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Denuncia: BBC III

O polêmico abate de jegues no Nordeste para produção de remédio na China

Pobreza e abate. O caminho do jumento até Amargosa é longo.

Os animais são recolhidos em vários pontos do Nordeste, como nos arredores da cidade de Paulo Afonso, no norte da Bahia, a 534 km do frigorífico.

Eles são pegos ou comercializados por agricultores pobres que trabalham no setor para fugir da fome, sob a supervisão de fazendeiros.

Um desses núcleos tinha um sertanejo em situação de fome como personagem. Em abril, ele foi abordado pela Polícia Militar depois de uma denúncia anônima apontar furto de jegues em Paulo Afonso, além de supostos maus-tratos.

Com ele foram encontrados 13 animais, embora ele tenha negado os furtos. Segundo o Boletim de Ocorrência, os jegues estavam em “claro estado de maus-tratos”, machucados, e sem água e comida por pelo menos três dias. Mas os jumentos não eram do sertanejo.

No BO, ele narra que recebia R$ 20 por animal recolhido, o único sustento da família.

“Com esse dinheiro é que estava vivendo, utilizando-o para comprar leite para os meninos, fraldas e comida para a casa”, narra o documento. Diz ainda que era a segunda vez que ele caçava e vendia jumentos, mas que não tinha dinheiro para alimentá-los. “Narra que os pegou apenas para colocar o que comer para o filhos.”

Quem comprava os jegues do sertanejo era um policial civil e fazendeiro chamado Antônio Fernando Filho, de 59 anos, morador da cidade de Rodelas, também no norte da Bahia.

No BO, ele afirmou que tinha mais de 100 em sua fazenda e que os repassava aos chineses — também argumentou que alimentava os animais e seguia todas as regras sanitárias.

Em entrevista à BBC News Brasil

por telefone, Filho diz que trabalhou na área por dois anos, mas parou depois do caso narrado acima. Ele ainda tem 30 animais em sua fazenda, mas diz que o local foi arrendado por outra pessoa, que recolhe jegues no interior do Piauí e do Maranhão. “Estão todos comendo feno e bebendo água do rio”, afirma.

 “A gente pegava no mato, na estrada, em qualquer lugar. Quando juntava uns 50, colocava num caminhão e enviava pro frigorífico em Amargosa, Simões Filho e Itapetinga (locais de outros abatedouro licenciados).”

Mas, nos últimos meses, o comércio na região de Paulo Afonso diminuiu muito, diz.

“Tem muito jumento ainda, mas eu parei também porque tem muita concorrência hoje, todo mundo atrás de jumento pra vender pros chineses. Aqui quase não tem mais animal, caiu 80%. Mas o povo precisa, está muito necessitado.”

 

Morte e maus-tratos

Depois de recolhidos, os animais percorrem mais de 530 km de caminhão até a Chapada Diamantina, onde são armazenados em fazendas arrendadas nas cidades de Iaçu, Milagres e Itatim, a cerca de 40 km do destino final em Amargosa.

No dia 18 de novembro, a reportagem encontrou cerca de 20 jegues em uma área de caatinga, às margens de uma rodovia praticamente deserta que liga as três cidades. Eles estavam sozinhos, pastando, algumas fêmeas grávidas e um filhote — um dia depois, desapareceram do local. Havia vegetação e água porque tinha chovido dias antes, mas nem sempre é assim.

Em 9 de julho deste ano, por exemplo, a Polícia Militar da Bahia recebeu uma denúncia: centenas de jumentos que seriam abatidos no Frinordeste estavam morrendo de fome e sede na fazenda Boa Esperança, em Itatim. Quem os encontrou foi o tenente Benjamin Pereira e Silva, comandante do pelotão da PM na cidade.

“Infelizmente a situação era pior do que imaginávamos. Eram uns 200 animais, que tinham vindo da cidade de Rodelas. Eles estavam bem debilitados, machucados, muitas fêmeas prenhas, muitas abortando. Não tinha mais capim nem água, nenhuma comida para eles. Era uma área totalmente árida. Encontramos muitos animais mortos, com urubus em cima. Não havia nenhum tipo de apoio de equipe veterinária. Levamos o gerente para a delegacia e ele foi autuado por maus-tratos”, relata o tenente.

“No dia seguinte, voltamos à fazenda e não havia mais nenhum animal. Todos foram levados para outro lugar”, diz o policial.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Em 2019, centenas de jegues foram encontrados em situação parecida nas cidades de Canudos e Itapetinga, também no interior da Bahia. Nestes casos, os animais seriam destinados a outros abatedouros, não o de Amargosa.

Em Canudos, estima-se que 200 dos cerca de 1 mil jumentos encontrados morreram de inanição. Os outros estavam bastante debilitados. No local, foram encontrados dois imigrantes chineses, responsáveis por cuidar do rebanho.

“Eram dois jovens que não recebiam salário para trabalhar ali. Não falavam português, tivemos que usar o Google Tradutor”, conta Patrícia Tatemoto, PHD em biologia e pesquisadora da ONG britânica The Donkey Sanctuary, que atua na defesa do jumento contra o mercado de ejiao. “Quando os encontramos, eles não tinham comida na fazenda, estavam com fome, não tinha nem banheiro. O laudo da polícia apontou que eles estavam em trabalho análogo à escravidão.”

Os dois imigrante ainda foram autuados por maus-tratos, mas nunca mais foram vistos na região de Canudos.

Mormo
Outro problema envolvendo o comércio de jumentos é uma doença chamada mormo, zoonose contagiosa que afeta equídeos e asininos e pode ser transmitida ao ser humano — o índice de mortalidade é alto, segundo pesquisadores. Ela é transmitida por contato de gotículas contaminadas com olhos, pele, mucosas e aparelho respiratório.

Em 2019, a Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab) decidiu examinar o sangue de 694 jumentos que foram apreendidos em Canudos. Dez deles estavam infectados com Mormo e precisaram ser sacrificados — outros 14 tinham anemia infecciosa equina, doença causada por um vírus.

“O contágio pela bactéria do mormo ocorre pelo contato de animais infectados com os indivíduos, como fazendeiros e veterinários”,

explicou Eusébio Lino Filho, médico-residente em infectologia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em uma audiência pública sobre o assunto na Assembleia Legislativa da Bahia.

Não havia relatos de mormo no Brasil até 2020, quando uma criança de 11 anos, da periferia de Aracaju, apresentou sintomas da doença, como dor no tórax e falta de ar — ela tinha contato constante com cavalos.

“No raio-X foi constatado um aumento no tamanho do coração incomum para a idade. Mesmo medicado, o paciente evoluiu mal. A pressão caiu, ele tinha vários nódulos no pulmão e abcessos pelo corpo”,

relata o médico, que participou do tratamento do paciente. Diagnosticada com mormo e tratada por 21 dias no hospital, a criança depois melhorou e recebeu alta.

By: Leandro Machado e Felix Lima
Enviados da BBC News Brasil a Amargosa (BA)

Link original da matéria:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59572597.amp

[caption id="attachment_107863" align="alignnone" width="1024"] Em Amargosa,o prefeito Júlio Pinheiro considerou a decisão justa, mas diz não conhecer bem os empresários responsáveis pelo abatedouro que funciona na cidade. “É um grupo chinês. Eles vieram aqui (na prefeitura) uma vez, mas não são pessoas conhecidas na cidade”, diz.FELIX LIMAELIX LIMA[/caption]
[caption id="attachment_107864" align="alignnone" width="1024"] Quem comprava os jegues do sertanejo era um policial civil e fazendeiro chamado Antônio Fernando Filho, de 59 anos, morador da cidade de Rodelas, também no norte da Bahia.   FELIX LIMA[/caption] [caption id="attachment_107870" align="alignnone" width="1024"] Dezenas de animais foram encontrados em situação de maus-tratos em Itatim em julho deste ano FELIX LIMAELIX LIMA[/caption]
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  • Gildo Ribeiro

    Gildo Ribeiro é editor do Grupo 7 de Comunicação, liderado pelo Portal 7 Minutos, uma plataforma de notícias online.

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