Estadão Internacional
Como a ‘Harmonia Perfeita’ entre Putin e Maduro testa a visão de Trump para a Venezuela
A relação entre o presidente russo Vladimir Putin e Maduro vem se desenvolvendo há anos
CARACAS – No início do mês passado, durante as comemorações do Dia da Independência da Venezuela, Nicolás Maduro proclamou que seu governo avançaria no desenvolvimento de sistemas de mísseis e antimísseis com a ajuda da Rússia.
O anúncio foi reforçado por um desfile que exibiu equipamentos militares adquiridos do Kremlin durante o boom do petróleo.
Hoje, os artefatos russos servem como um dissuasor simbólico em um ambiente geopolítico em mudança, à medida que a Venezuela enfrenta um crescente isolamento internacional.
A demonstração de cooperação militar de Maduro com Moscou não foi um evento isolado: um dia antes do desfile, seu governo e o conglomerado estatal russo de armas Rostec anunciaram a abertura de uma fábrica de munição para fuzis de assalto Kalashnikov em Maracay, uma cidade a cerca de 120 km de Caracas.
A fábrica, uma das poucas inauguradas no empobrecido parque industrial do país, tem capacidade para produzir 70 milhões de cartuchos por ano e incluirá a fabricação dos famosos fuzis AK103.
Este é um passo importante no desenvolvimento da cooperação tecnológica com nosso principal parceiro na América Latina,
disse o diretor executivo da Rostec, Oleg Yevtushenko, sobre a fábrica.
Outras instalações de produção estão previstas para serem inauguradas em breve,
acrescentou ele, garantindo um ciclo completo de produção de munição e fuzis de assalto Kalashnikov para o Exército venezuelano, a polícia e outras agências de aplicação da lei.
O conceito desta fábrica — a primeira do tipo nas Américas — surgiu durante o governo do falecido ditador Hugo Chávez, há mais de duas décadas, mas foi adiado por anos devido a alegações de corrupção, falta de vontade política e financiamento.
Seu renascimento e conclusão não apenas consolidam os laços militares entre Caracas e Moscou, mas também confirmam o interesse estratégico de ambos os governos em fortalecer os laços em meio a tensões renovadas entre a Rússia e os EUA.
Uma ‘harmonia perfeita’
A relação entre o presidente russo Vladimir Putin e Maduro vem se desenvolvendo há anos e, desde 2013, eles se encontraram mais de dez vezes, mantendo uma troca regular de mensagens e telefonemas.
Agora, porém, os dois líderes são forçados a agir rapidamente para finalizar os acordos e colher seus benefícios.
Maduro precisa mostrar ao mundo que tem amigos poderosos que podem ajudá-lo a resgatar a economia em declínio da Venezuela, e Putin quer lembrar aos EUA que tem um parceiro leal na América Latina, a apenas dois mil quilômetros da Flórida.
Hoje, nossa relação atingiu um nível de associação estratégica, disse Putin em abril, em um evento virtual com Maduro,
no qual comemoraram os 80 anos de relações diplomáticas entre os dois países.
Nos últimos anos, a relação avançou em várias áreas, à medida que Maduro destruiu as âncoras democráticas da nação para permanecer no poder.
Os dois países têm cerca de 350 acordos bilaterais em vigor, abrangendo cooperação militar e de defesa, espionagem e contraespionagem, tecnologia aeroespacial, “energia nuclear para fins pacíficos”, mineração, automóveis e até mesmo a integração de sistemas financeiros.
O banco russo-venezuelano Evrofinance Monsnarbank, por exemplo, “funciona com sucesso” em Caracas desde 2014, e os cartões do sistema de pagamento MIR são aceitos no país.
Além disso, os países mantêm um comércio ativo de armas, veículos, fertilizantes, alimentos, vodca, rum, serviços de turismo, cooperação em esportes e educação e medicamentos como insulina e, desde a pandemia, vacinas contra a Covid-19.
A Geropharm exporta medicamentos para a Venezuela desde 2019 e, em maio, os dois países anunciaram planos para expandir sua colaboração na área farmacêutica.
Durante esse processo, a Venezuela se tornou o sexto maior comprador de armas russas no mundo e o maior nas Américas, de acordo com o Banco de Dados de Transferências de Armas compilado pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI).
Mais importante ainda, a Rússia forneceu ajuda fundamental na venda de petróleo venezuelano no exterior para contornar as sanções petrolíferas dos EUA.
Há uma harmonia perfeita entre a Rússia e a Venezuela, proclamou Maduro em maio, após se reunir com Putin em Moscou durante a comemoração do 80º aniversário do fim da 2º Guerra Mundial.
Na ocasião, eles assinaram uma aliança de 10 anos, renovável a cada cinco anos, que, de acordo com a retórica oficial e a mídia, torna a Venezuela o principal parceiro da Rússia na região.
Na verdade, a Rússia tem sido um parceiro vital na compra de petróleo venezuelano, geralmente por meio de transações ocultas e refinarias indianas, envolvendo empresas como a Reliance Industries Limited, de acordo com Evan Ellis, professor pesquisador de Estudos Latino-Americanos no Instituto de Estudos Estratégicos do Colégio de Guerra do Exército dos Estados Unidos.
Isso tem o potencial de irritar o presidente Trump, embora tenha permanecido fora do radar até agora, disse ele à AQ.
Desde que Trump voltou à Casa Branca, a política dos EUA em relação à Venezuela tem sido caracterizada por acordos pontuais para troca de prisioneiros e uma postura errática em relação às licenças de petróleo para empresas americanas que operam no país, como a Chevron.
No final de julho, o Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC) do Departamento do Tesouro sancionou o “Cartel de los Soles” como Terrorista Global Especialmente Designado, rotulando-o como um grupo criminoso liderado por Nicolás Maduro Moros e outros indivíduos venezuelanos de alto escalão do regime de Maduro.
Em 7 de agosto,
o Departamento de Estado e o Departamento de Justiça dobraram a recompensa por informações que levassem à prisão ou condenação de Maduro para US$ 50 milhões, sob o argumento de ser um dos maiores narcotraficantes do mundo.
Ecos de Cuba
De muitas maneiras, a Venezuela de Maduro é para a Rússia o que Cuba era para a antiga União Soviética: o principal peão nas Américas de um país hostil aos EUA.
A aliança entra em conflito com os interesses ocidentais e preocupa os formuladores de políticas externas de Washington.
E enquanto Maduro repete a retórica do Kremlin, ele tenta fortalecer seu próprio projeto de poder: formar alianças em todas as áreas para apoiar um governo impopular que ele espera manter no poder por mais três décadas.
Maduro afirma que os acordos bilaterais com a Rússia representam um “nível máximo de cooperação”, enquanto cerca de 50 democracias se recusam a reconhecer seu governo após as eleições presidenciais fraudulentas de julho de 2024.
Em maio, a Assembleia Nacional controlada pelo governo aprovou um novo plano nacional de desenvolvimento para 2025-2031 chamado “As Sete Transformações”, e afirma que países como Rússia, China e Irã, todos em desacordo com o governo Trump, ajudarão a concretizá-lo.
Dada a incerteza em relação às sanções dos EUA — que revogaram as licenças operacionais da Chevron e depois as restabeleceram no mês passado —, a cooperação com a Rússia ganha importância estratégica, já que a economia da Venezuela deve se contrair novamente este ano.
O pequeno crescimento econômico registrado nos últimos três anos não compensa a contração de mais de 70% do PIB sofrida entre 2014 e 2020, de acordo com dados do FMI. Hoje, a economia do país é uma das menores da América Latina em termos de PIB per capita.
Além dos bens de consumo, o petróleo é de longe a área mais importante em termos geopolíticos da relação bilateral, e essencial para perpetuar Maduro no poder.
Em parceria com a estatal Petróleos de Venezuela SA (PDVSA), a Rússia participa de cinco associações petrolíferas no país por meio da estatal Roszarubezhneft, que produziu cerca de 120.000 barris por dia no ano passado, de acordo com dados compilados pela Reuters.
Embora haja um claro potencial para aumentar a produção, especialistas em petróleo argumentam que a Rússia tem espaço ou desejo limitado para expandir além desse nível.
A Rússia favorece seu próprio mercado e o da China, e precisa lidar com o impacto econômico da guerra na Ucrânia.
Além do petróleo, Putin não conseguiu ajudar Maduro com dinheiro novo.
A balança comercial entre a Rússia e a Venezuela mal atingiu US$ 1,2 bilhão em 2024 — muito abaixo do que Moscou negocia com o Brasil, México, Chile e Argentina — de acordo com dados do FMI e da Alfândega Russa citados pela Transparência Venezuela, uma filial da Transparência Internacional, uma coalizão global dedicada ao combate à corrupção.
De acordo com a organização, desde 2018 até maio deste ano, a Rússia não se comprometeu publicamente com novos empréstimos ao regime de Maduro.
A Transparência Venezuela estima que, durante a era de ouro dessa relação — entre 2004 e 2018 —,
a Rússia emprestou à Venezuela um total de US$ 34 bilhões, principalmente para a compra de equipamentos militares acordados em contratos confidenciais, sem licitação.
As compras ajudaram a colocar a Venezuela entre as dez forças militares mais poderosas da América Latina.
Em última análise,
a relação atual é definida por interesses políticos comuns.
Se dependesse de Maduro, seríamos quase como uma colônia russa, porque ele precisa dessa relação, desses recursos, desse dinheiro,
disse a ativista Mercedes de Freitas, diretora da Transparencia Venezuela, à AQ.
Neste momento, a relação política é um alinhamento estratégico, mas não acho que avançar nela dependa de Maduro, mas sim da Rússia e de Putin.
Em sua viagem a Moscou no início deste ano, Maduro tentou garantir fundos e pressionou Putin para que a Venezuela entrasse no Brics, cujo banco de investimentos ele vê como uma alternativa a fontes como o FMI e o Banco Mundial. No entanto, Putin “não se esforçou para incluir a Venezuela no Brics”, disse de Freitas.
Até agora, a aliança entre Maduro e Putin tem se baseado em retórica antiocidental e antiamericana.
No início deste ano, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, descreveu o valor simbólico e o futuro desses laços.
A Venezuela é o epicentro das forças progressistas de esquerda no continente, escreveu Lavrov em um artigo para comemorar as relações diplomáticas entre os dois países.
Reconhecemos com gratidão seu apoio aos esforços da Rússia para expandir a colaboração com a região.
Com economias enfraquecidas e pressões internas e externas crescentes, os dois países são forçados a solidificar essa relação em evolução para colher os benefícios.
Ainda é cedo para determinar se a Rússia ajudará Maduro a preservar seu regime — navegando por outro colapso econômico — e se a aliança ganhará força suficiente para capturar totalmente a atenção de Washington.
Por Omar Lugo (Americas Quarterly)
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