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A megaoperação no Rio de Janeiro,

O Império do Crime e a Revolução dos Marginais: A Queda da Soberania Nacional

“Em toda parte onde o poder desaparece, o homem é tentado a substituir a política pela força.” — Hannah Arendt

As imagens da megaoperação no Rio de Janeiro, realizada na terça-feira, 28 de outubro, mostraram um país em estado de guerra.

Blindados cruzando ruas estreitas, helicópteros sobrevoando favelas, escolas fechadas, crianças deitadas no chão para escapar de balas perdidas.

Foi noticiado como “operação policial”, mas o que se viu foi um cenário de guerra urbana.

Aquelas imagens não são um episódio isolado — são sintoma de uma enfermidade nacional, o retrato de um Estado que perdeu o controle sobre partes de seu próprio território.

O Rio é o espelho do Brasil: belo e devastado, dominado por forças paralelas que há décadas corroem o poder legítimo e impõem sua própria lei.

Há guerras que não se declaram, mas que moldam o destino de uma nação.

O Brasil vive uma dessas guerras silenciosas: um conflito entre o Estado e as forças que ele próprio ajudou a criar.

Chamam-nas de facções, mas elas são muito mais que isso — são o retrato de um país que perdeu o monopólio da autoridade moral e da coerção legítima.

O documentário Notícias de uma Guerra Particular (1999), de João Moreira Salles e Kátia Lund, já anunciava o colapso: o policial e o traficante, ambos filhos do mesmo Estado ausente, travam uma guerra onde não há vitoriosos. Só ruínas, silêncio e medo.

A história dessa tragédia começa nas celas úmidas do Presídio de Ilha Grande, nos anos 1970.

Ali, entre os muros do Instituto Penal Cândido Mendes, nasceu o Comando Vermelho, o embrião do narco-terrorismo brasileiro.

O regime militar, que pretendia “restaurar a ordem”, havia lotado o presídio de presos comuns e presos políticos.

E foi nesse convívio forçado que ocorreu o cruzamento fatal entre duas visões de mundo: de um lado, os militantes de esquerda, instruídos em táticas de organização, solidariedade e resistência; de outro, os criminosos comuns, mestres da sobrevivência e da violência cotidiana.

A mistura foi explosiva.

Os revolucionários ensinaram disciplina e hierarquia aos bandidos, que, por sua vez, ensinaram os métodos da rua. Da fusão nasceu uma nova forma de poder subterrâneo: o crime organizado com consciência política, estrutura e código.

O lema “Paz, Justiça e Liberdade” — inocente aos ouvidos desavisados — era a senha de um pacto que transcenderia o cárcere.

Herbert Marcuse, em O Homem Unidimensional e Eros e Civilização, já havia sugerido que os novos agentes da revolução não surgiriam mais do proletariado clássico, mas dos marginalizados, dos delinquentes, dos rejeitados pelo sistema.

O Comando Vermelho foi, sem sabê-lo, a materialização tropical desse diagnóstico: uma revolução subterrânea, movida pelo ressentimento e pela ausência de Estado, em que o delinquente se tornava sujeito político, ainda que pela negação.

Quando o regime militar caiu, o Brasil acreditou que a redemocratização curaria suas feridas.

Mas as feridas haviam se tornado metástases.

Durante o governo Brizola, no Rio de Janeiro, o Estado, em nome dos direitos humanos, proibiu a polícia de subir os morros sem autorização judicial.

A intenção era evitar abusos, mas o efeito foi devastador: o tráfico ocupou o vácuo deixado pelo poder público.

O morro tornou-se território autônomo — e, como ensinou Max Weber, todo Estado é aquele que detém o monopólio legítimo da força física.

No Rio, esse monopólio passou às mãos do fuzil.

Mas a simbiose entre crime e poder antecede as facções.

Desde os tempos da ditadura, os bicheiros foram os primeiros a financiar campanhas políticas, subornar delegados e comprar juízes.

Castor de Andrade, patrono do carnaval e símbolo da contravenção, tratava com ministros e generais — foi o rosto visível de uma elite criminosa tolerada pelo Estado.

Quando o jogo do bicho se institucionalizou como “tradição carioca”, o crime ganhou respeitabilidade social.

E dessa cultura de tolerância nasceu o embrião das milícias, que décadas depois se tornariam o braço armado do poder paralelo, explorando gás, internet, transporte, imóveis e o próprio medo da população.

As milícias são o espelho sombrio do tráfico: onde o Estado falha, elas assumem o controle e cobram por “segurança”. E o cidadão, abandonado, aceita o jugo de um senhor local em troca de alguma ordem.

Enquanto isso, São Paulo via nascer seu próprio monstro.

Em 1993, dentro do presídio de Taubaté, um grupo de detentos fundava o Primeiro Comando da Capital (PCC), supostamente para vingar o massacre do Carandiru.

O discurso era o mesmo: justiça, união e liberdade. Mas, por trás da retórica, formava-se um império paralelo, estruturado como uma empresa — com contabilidade, hierarquia e código de ética interna.

O PCC não apenas controla presídios e o tráfico; administra fronteiras, negocia com cartéis sul-americanos e penetra as estruturas políticas e policiais.

Hoje, controla rotas internacionais de cocaína, mantém negócios em países vizinhos e tem alianças com remanescentes das FARC, que, ao abandonarem o discurso ideológico, mantiveram a prática do narcotráfico como economia de guerra.

O crime, que nasceu como resistência, tornou-se governo.

Nos morros do Rio e nas quebradas de São Paulo, quase 30 milhões de brasileiros vivem sob leis próprias, impostas por fuzis e julgadas em “tribunais do tráfico”.

Lá, o Estado não chega — não há escola, hospital ou policiamento efetivo.

Mas há “justiça”, “ordem” e “serviços”: gás encanado, internet, TV a cabo, mototáxi, padarias, açougues. Tudo sob o selo das facções.

O crime passou de consumidor de território a seu explorador soberano — um poder paralelo que arrecada impostos e presta serviços, à semelhança dos senhores feudais medievais.

Zygmunt Bauman diria que vivemos a liquefação da autoridade, onde o Estado se dissolve em burocracias e o poder migra para onde é exercido com eficiência.

O morro, nesse sentido, tornou-se o laboratório de uma nova forma de governo: o Estado do crime, mais eficaz que o Estado formal, porque está presente, impõe normas e garante “segurança” aos que o obedecem.

Mas o drama brasileiro não é apenas político; é moral e psicológico.

As ONGs e discursos acadêmicos que, sob o pretexto de “inclusão social”, relativizam o crime, acabaram por romantizar o delinquente e demonizar o agente da lei.

A estética do tráfico — o funk ostentação, o poder exibido em ouro e fuzis — tornou-se uma pedagogia perversa.

O jovem das periferias, órfão de Estado e de esperança, encontra ali uma forma de ser alguém.

É o que se pode chamar de perversão simbólica: o desvio moral travestido de status cultural.

O mal torna-se modelo; o crime, um rito de iniciação.

Walter Benjamin lembrava que todo monumento de cultura é também um monumento de barbárie.

E o funk que exalta o crime é precisamente isso: uma expressão cultural legítima, mas também o espelho da barbárie institucionalizada.

O resultado é uma guerra assimétrica, não entre exércitos, mas entre narrativas.

O Estado deve respeitar as leis; o crime, não.

O Estado é filmado, cobrado, condenado; o traficante é invisível, protegido pela culpa social e pela omissão das elites políticas.

A ADPF 635, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, consagrou a limitação das operações policiais nas comunidades — o argumento era preservar vidas, mas o efeito foi consolidar o domínio do crime, pois nenhuma força armada se sustenta quando é obrigada a pedir licença ao inimigo para combater.

Essa é a essência da guerra moral e narrativa: a mídia tradicional denuncia a polícia, o Judiciário impede sua ação, e ONGs fazem lobby político em nome dos criminosos.

O filme Tropa de Elite mostrou isso com brutal clareza: o Capitão Nascimento não luta apenas contra o tráfico, mas contra o sistema que o alimenta e o condena por combatê-lo.

O Rio de Janeiro é hoje uma metáfora de si mesmo — uma cidade partida e sitiável.

Em certas áreas, entrar é tão perigoso quanto atravessar a Faixa de Gaza: território minado, governado por forças paramilitares, onde o Estado é presença estrangeira.

O morro tornou-se uma zona de guerra interna, com civis sob domínio de facções e milícias que se revezam no controle da vida cotidiana.

Michel Foucault dizia que “onde há poder, há resistência” — mas no Brasil, a resistência inverteu-se: é o poder legítimo que resiste ao avanço da ilegalidade. E essa inversão é a raiz da nossa tragédia.

O Estado que se diz democrático é, na verdade, cúmplice.

Cúmplice porque negociou com bicheiros durante a ditadura.
Cúmplice porque, sob governos de esquerda, revestiu o crime de narrativa social.
Cúmplice porque, hoje, tolera o narco-poder em troca de paz política.

Enquanto a sociedade discute abstrações, o crime atua com método, economia e doutrina.

As facções são, na prática, organizações terroristas: controlam território, impõem leis, exploram a economia, intimidam o Estado e mantêm a população refém — todos elementos que, segundo a definição da ONU, configuram terrorismo doméstico.

Tratar o problema como “segurança pública” é ingenuidade; trata-se de segurança nacional.

E, se o Estado brasileiro não tem mais condições de reagir sozinho, que ao menos reconheça o problema e peça cooperação internacional, pois o tráfico não respeita fronteiras — e sua economia subterrânea movimenta bilhões que financiam armas, corrupção e guerras culturais.

As imagens da megaoperação de terça-feira, 28 de outubro, voltam então à mente: helicópteros, tiros, blindados, sangue. Mas o que se combate ali não é apenas o tráfico — é a materialização de décadas de cumplicidade, omissão e covardia institucional.

Aquelas cenas não são o fim de uma guerra; são o começo de uma nova fase dela.

Porque o que se trava hoje nas favelas brasileiras não é mais uma disputa por drogas, mas por soberania.

E enquanto o Estado hesita, os criminosos governam.

O Brasil não está em guerra: o Brasil é a guerra.

Quem luta com monstros deve cuidar para não se tornar um deles, advertia Nietzsche.

O Brasil, que um dia se orgulhou de ser um país pacífico, agora precisa lutar — não por ideologia, mas pela própria ideia de civilização.

Porque quando o crime se torna governo, e o Estado vira refém, não há mais cidadãos — há súditos.

E os súditos, como a história sempre provou, não fazem revoluções: apenas sobrevivem à barbárie que permitiram nascer.

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Por: Rodrigo Schirmer Magalhães
Cientista político e Analista de Politica

 

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  • Gildo Ribeiro

    Gildo Ribeiro é editor do Grupo 7 de Comunicação, liderado pelo Portal 7 Minutos, uma plataforma de notícias online.

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