Opinião de uma grande obra
‘Cem Anos de Solidão’ é experiência grandiosa. Mas é melhor do que o livro? Veja perdas e ganhos
Série da Netflix que adapta o grande romance de Gabriel García Márquez estreia primeira parte com o lirismo sonhador de seus personagens.
Conheça as principais diferenças entre livro e série
Quando publicou Cem Anos de Solidão, em 1967, o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) não poderia imaginar que sua obra fosse às telas.
Sobretudo, porque ele não desejava isso.
O autor chegou a afirmar, mais de uma vez, que escrevera aquele livro “contra o cinema”, juntando seus argumentos recusados por produtores audiovisuais.
Em uma entrevista em 1989 para o documentário Tales Beyond Solitude, Gabo explicou suas razões:
Os leitores de todos os meus livros, me dizem: olha, eu gostei do seu livro porque Úrsula Iguarán é muito parecida com minha vovozinha,
porque Amaranta é igualzinha a uma tia minha (…) Então, você sente que as pessoas vivem a história.
No cinema não dá, porque você tem a cara do Anthony Quinn, da Sofia Loren, do Robert Redford.
É inevitável.
E é muito difícil que um avô nosso se pareça com o Robert Redford.
Eu prefiro deixar para os leitores [imaginarem].
Literatura é literatura e cinema é cinema. (…)
O romance deixa uma margem de criação para o leitor que o cinema não deixa.
A imagem é impositiva demais.
Literatura é literatura e cinema é cinema?
Pois no último 11 de dezembro este tabu caiu, no que se pode chamar de o grande acontecimento do audiovisual deste fim de 2024: a série Cem Anos de Solidão, no streaming.
E, diferentemente do que os puristas poderiam pensar em décadas passadas, a saga dos Buendía não surgirá na sala escura do cinema, numa experiência coletiva de cerca de 120 minutos, mas na tela pessoal de cada espectador, ao longo de 16 episódios de aproximadamente uma hora cada.
Além das interrupções de bipes, pop-ups, zaps e e-mails, os mais afoitos terão que aguardar até a segunda entrega da Netflix, que oferece, de imediato, apenas oito dos dezesseis episódios.
Não será possível maratonar (esse verbo contemporâneo) a série inteira.
E isso lembra a experiência do primeiro leitor do manuscrito, o editor argentino Francisco Porrúa que, em 1967, só recebeu metade do livro porque o autor e sua esposa Mercedes, tinham pouco mais de 40 pesos e o envio do calhamaço de setecentas páginas pelo correio passava dos 80.
Assim como Porrúa, há quase sessenta anos, teve que se encantar pela amostra que tinha, também os espectadores de hoje farão este julgamento antes de embarcar na segunda parte.
Saber mostrar, saber calar
O crítico e professor de literatura João Alexandre Barbosa (1937-2006) dizia que a grande vantagem de não ter lido o D. Quixote ainda era poder lê-lo pela primeira vez.
Os leitores de Cem Anos de Solidão que se aventurarem à série sentirão o mesmo: não terão o privilégio de ver a adaptação com olhos virginais e vão estar condenados a todo momento a comparar o que a tela exibe com o que haviam imaginado lendo o romance.
Desafio e tanto que os produtores da obra tiveram que enfrentar, diante de uma obra que se vale do imaginário histórico sobre a América Latina.
Em resposta, oferecem imagens deslumbrantes na natureza virgem, atores com traços nativos e corpos erotizados.
Em certos momentos, é como se estivéssemos outra vez em 1990, assistindo à telenovela Pantanal, de Jayme Monjardim, na TV Manchete.
Os grandes achados da adaptação são aqueles em que o verbo de García Márquez se faz imagem, sem a mediação do texto do livro ou a voz de um narrador.
Um exemplo é a célebre cena em que o cigano Melquíades exibe, como se fosse mágico, o imã, diante do povoado incrédulo de Macondo.
Na série, a cena não tem palavras, pois se veem as panelas e demais utensílios ganharem vida e irem em direção às barras magnéticas; apenas um curto diálogo, inexistente no livro, arremata a cena: “Isso é bruxaria!”, diz uma mulher. “Não, isso é ciência!”, retruca o cigano.
Em outras várias passagens, a voz de um narrador em off, declamando trechos do romance, arrebenta com a ilusão novelesca e nos faz lembrar que os pobres produtores estão numa luta física com um monumento literário, sem saber o que fazer com o texto de Gabo.
Nesses casos, ocorre algo que fazem os locutores de futebol mais afoitos da televisão: narram o que já estamos vendo na tela, como se a imagem não bastasse.
O que poderia ser uma homenagem ao texto da obra se torna uma tautologia injustificada.
Isso acontece, por exemplo, no segundo episódio, quando José Arcadio, obcecado pela alquimia, é chamado à realidade por sua esposa Úrsula e passa a se encarregar dos filhos.
Uma voz em off, citando o livro, conta-nos o que já estamos vendo.
Cenas delicadas do romance, como a iniciação de José Arcadio, filho, com Pilar Ternera, perdem ao se tornarem um ato sexual entre um casal de atores com belos corpos.
Nem tudo é perda, porém: as cenas com os ciganos em geral, e com Melquiades, em particular, ganham em colorido, movimento, porque a mera exibição de suas roupas e seus objetos mágicos (ímãs, astrolábio, mapas) prescinde do verbo, e a direção sabe calar nesse momento.
Recria-se assim o impressionante encontro cultural entre a feira medieval europeia e o povoado latino-americano de Macondo: puro deleite.
A fala local
O crítico uruguaio Ángel Rama exaltava um grupo de escritores latino-americanos da geração de García Márquez, como Guimarães Rosa, José María Arguedas e Juan Rulfo, por narrarem suas histórias a partir de pequenos povoados latino-americanos, com um ponto de vista local e com o resgate das línguas autóctones.
De todos esses escritores, García Márquez foi aquele que deu menos atenção à língua indígena e, diferentemente de Arguedas, com longos trechos em quíchua em seu Os Rios Profundos, não permitia que seus leitores ouvissem língua guajira.
Mais ainda, caracterizava os indígenas de um modo algo estereotipado: “[Visitación e seu irmão] eram tão dóceis e serviçais que Úrsula os encarregou de ajudarem nos ofícios domésticos.
Foi assim que Arcádio e Amaranta falaram língua guajira antes do castelhano e aprenderam a tomar caldo de lagartixas e a comer ovos de aranha sem que Úrsula percebesse, porque estava ocupada demais com o negócio dos pirulitos de bichinhos.” (capítulo III).
Pois a série tem um apuro mais de acordo com os códigos contemporâneos.
Houve uma pesquisa linguística e Visitación, Cataure, Arcádio e Amaranta de fato falam língua guajira, diante de uma Úrsula que, por outro lado, insiste que falem apenas a língua espanhola.
O zelo vai além, pois todos os personagens falam espanhol caribenho; o espanhol peninsular, muito adequadamente, fica por conta do cigano Melquíades, o brilhante ator espanhol Moreno Borja.
Tal cuidado é um mérito e tanto para uma produção global, que esquivou atalhos fáceis de ceder à homogeneidade linguística.
Cem Anos de Solidão’ nas telas contemporâneas
A grande pergunta, para quem leu o romance, é: vale a pena a experiência da série?
A resposta é: o universo narrativo de García Márquez está na tela, em movimento, com o lirismo sonhador de seus personagens e com a exuberante natureza selvagem.
A obra escrita tem mais matizes, mais sutilezas, mas é uma experiência e tanto ver outra forma de colocar em cena, com dezenas de atores, o universo de Macondo, que ficou por décadas na imaginação de cada leitor.
Numa palavra: com perdas e ganhos, Cem Anos de Solidão agora tem som, imagem e movimento, é uma obra delicada, muitíssimo bem produzida e que merece ser vista.
Em um mundo sem literatura, seria uma obra-prima.
No nosso, onde a narrativa escrita ainda resiste, é uma experiência estética grandiosa, que compensa as horas de dedicação.
Tal como no livro, é certo que a série irá despertar, com sua linguagem própria, utopias e estereótipos sobre a natureza e o suposto maravilhoso latino-americano.
Não foi García Márquez quem criou isso: tem sido assim desde 1492. Que sejam cada vez menos literais e mais oníricas tais imagens, é o mínimo que podemos desejar.
Pontos fortes
- Paisagem natural colombiana
- Casting com atores locais
- Os personagens ciganos
- Apuro linguístico: presença da língua guajira (wayuu) e do castelhano caribenho
- A atuação do espanhol Moreno Borja, o Melquíades
Pontos fracos
- Excesso de narração em off
- Abuso do erotismo
- Intrusão de elementos biográficos do autor no personagem José Arcadio, como o sonho com
- A cena em que Aureliano Buendía conhece o gelo
- O desperdício da exuberância visual limitada nas telas domésticas
Por que ler o livro
O poder imagético e sugestivo de uma história muito bem contada de García Márquez, que busca e alcança uma dimensão de universalidade, como D. Quixote e As Mil e Uma Noites.
García Márquez opera com maestria a diferença cultural, naturalizando o cotidiano não-ocidental de Macondo e magnificando o cotidiano ocidental.
A dimensão da história latino-americana contada sutilmente ao longo da narrativa.
O efeito vertiginoso das repetições familiares ao longo das gerações.
Cenas memoráveis, como a iniciação sexual de José Arcadio com Pilar Ternera são delicadas e magnéticas, e a série não dá conta de reconstruí-las.
Por que ver a série
A série transpõe ao audiovisual contemporâneo, com méritos e alguns achados, uma das obras literárias mais importantes do século vinte.
Os personagens indígenas guajiros, como Visitación e Amaranta, são caracterizados com apuro visual e linguístico, superando a obra literária.
A experiência visual da série, quando bem sucedida, enriquece o imaginário dos leitores do livro.
Melquíades e os ciganos são um espetáculo à parte.
Cenas épicas, como o êxodo de Úrsula, José Arcadio e os seus, do lugar de nascimento em busca do mar, com paisagens selvagens e sertanejas.
Opinião por: Wilson Alves-Bezerra
Escritor, tradutor e professor do Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal de São Carlos