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By Julián Fuks Colunista do UOL

Precisa-se de terrorista

Capaz de um ato sutil que transforme a história

Não desses violentos, nunca desses intolerantes e truculentos, jamais desses sanguinários e grosseiros.

 

Precisa-se de um terrorista

com máxima aversão ao sangue e à dor alheia, crítico ferrenho da impiedade e da indiferença.

 

Precisa-se de um terrorista

incapaz de covardia, contrário a toda crueldade, alérgico às armas e aos dedos em riste que insistem em tomar conta do país.

 

Precisa-se de um terrorista

ocioso e sonhador, um desses seres poéticos que se veem tão pouco à vontade em nosso tempo.

 

Precisa-se de um terrorista inadaptado às urgências opressivas do trabalho, mas disposto a trabalhar no feriado de 7 de setembro.

 

Precisa-se de um terrorista

que conheça a história, que entenda os acontecimentos do passado em suas profundezas, não em seu caráter celebrativo ou anedótico.

 

Que saiba que o grito da independência

entoado há duzentos anos foi uma mentira, uma farsa insidiosa, e não só porque não havia nada de heroico no monarca em desarranjo sobre um burrico qualquer, ou porque a declaração já tinha sido feita dias antes por sua mulher.

 

Que saiba que aquele homem, ao se autodeclarar imperador, não o fazia para fundar país nenhum, e sim para garantir a si mesmo e ao seu séquito a manutenção de seus privilégios, a continuidade da escravidão por mais algumas décadas.

 

Que saiba, então,

que em tal grito mítico estava contido um grito bem mais dramático e aflito, o grito da multidão negra condenada à exploração desumana

 

Precisa-se de um terrorista

que compreenda bem o presente, que perceba que a fúria que hoje vemos também é feita da sanha de perpetuar privilégios, quase os mesmos a atravessar os séculos sem trégua.

 

Que perceba a repetição dos discursos,

do desejo de continuar a explorar e destruir os trabalhadores e a terra, que note quanto o racismo de hoje ecoa os horrores do escravismo longevo, quanto toda discriminação ainda provém desse projeto de país tacanho e cruel.

 

Que perceba também

que agora se repete o desejo de permanência forçada no poder, a mesma ideia de que um homem messiânico deveria continuar a imperar, contra a vontade das gentes.

 

Precisa-se de um terrorista ateu,

que não veja nada de sagrado ou de intocável nos restos de um sujeito que morreu há quase duzentos anos.

 

Que compreenda

que o coração não é mais que uma víscera entre tantas, e que essa víscera de um velho e infame governante já deveria ter apodrecido como qualquer outra, como as de qualquer homem comum, já deveria ter se tornado carne para os vermes.

 

Precisa-se de alguém

que enxergue o absurdo que é mover toda a máquina estatal para trazer um naco cinzento de cadáver, e tratá-lo com as pompas de um líder vivo e estimado, digno do máximo respeito.

 

 

Precisa-se de um terrorista inventivo e sutil,

um terrorista inteligente, que conceba uma maneira mais razoável de tratar o coração pútrido de Dom Pedro I.

 

Um terrorista mais inventivo

que este escriba, que consiga com um ato expressivo e contundente nos livrar de tanto escárnio. Alguém que nos ajude a redimir a dor perene dos escravizados, e quem sabe assim a declarar uma nova e verdadeira independência.

 

Alguém que faça o país se reconciliar

com seu passado, não em sua face bárbara e inclemente, mas em seu vasto histórico de luta e resistência.

 

Alguém que saiba dar o fim

devido ao coração de um imperador autoimposto, para devolver enfim ao povo seu coração próprio, vivo, vermelho.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

By: JULIÁN FUKS
Link original da matéria:
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2022/08/27/precisa-se-de-terrorista-capaz-de-um-ato-sutil-que-transforme-a-historia.htm

 

[caption id="attachment_124089" align="alignnone" width="1024"] Julián Fuks Foto: Luís Barra[/caption]
[caption id="attachment_124088" align="alignnone" width="1024"] O coração de Dom Pedro I e uma pintura do imperador - Imagem: © Marcelo Camargo/Agência Brasi[/caption]
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  • Gildo Ribeiro

    Gildo Ribeiro é editor do Grupo 7 de Comunicação, liderado pelo Portal 7 Minutos, uma plataforma de notícias online.

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